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Meu avô era bonito, podíamos até dizer que ele era muito bonito ! Um belo homem de aparência arredondada, terna e charmosa. Um jovem homem velho... Ele não se parecia com esses velhos caducos, como os avós de meus companheiros, e dos garotos da rua, curvados, dobrados em dois, com um nariz grego parecido a uma pêra, pendendo pesada sobre o ramo, prestes a cair; as rugas ou melhor, os sulcos de seus pescoços cheios de sujidades de decênios e os olhos enterrados em suas órbitas e sempre ramelosos. Ele não era do tipo que deixava chamuscar o bigode pelo tabaco, se apressando em mergulhar em sua sopa, nem como os que têm por habito espalhar sua saliva. Totalmente ao contrário, ele não gostava desses tipos repugnantes. Que tiram freqüentemente a dentadura, raspando com o dorso de um garfo e engolindo a sujeira no fim dessa operação... Ou mesmo que deixam cair sua dentadura em pleno público e provocar nojo. Essas lhe eram atitudes incomuns. Em fim, mesmo que seus dentes fossem falsos, eu ignorei isso até o dia em que pude perceber durante uma conversa. Ele tinha dentes falsos até aqui eu não podia os distinguir em um pote de iogurte!... Ele não fazia parte dos velhos que se negligenciavam. De manhã, quando acordava, ele tomava uma ducha quente. Era já um hábito. Nem o frio, nem a doença - a menos que ele estivesse doente a ponto de ficar acamado – podiam lhe impedir... Ele não saía jamais do banheiro sem antes se pentear – seus cabelos brancos, eram abundantes – e de cortar o bigode, com a ajuda de suas pequenas tesouras. Em seguida, ele passava sua camisa sobre a qual juntava um casaco trespassado. Colocava sua calça, instalava-se em seu banco de palha e se punha a ler o jornal. Depois de tomar o café da manhã, se fechava em no quarto para passar suas roupas, dobrar as meias, que ele tinha lavado nas vésperas, arrumar sua cama e seu quarto. Mais tarde ele saía e se ocupava do jardim. As árvores e as flores que ornavam nosso jardim eram obras de seu trabalho. Quando alguém chegava, ele trocava rápido sua calça e seus chinelos ordinários por aqueles de festa que estavam aos pés da cama, dava corda em seu relógio, e perfumava suas mãos com água de colônia. Vinha então até a sala, cumprimentava a visita com um respeitoso “seja bem vindo!”. Se instalava em seu banco e se colocava a escutar, com um doce sorriso nos lábios. Ele não falava jamais sem ser interrogado. Achava inconcebível vir à uma reunião de família sem seu casaco. Cortar as unhas não importa onde, tirar os sapatos ou deixar as roupas sobre o assento; ficar dormindo em frente à TV, falar a toda hora de doença, dos males de seu estômago, de seus rins... Eram coisas que ele detestava. Portanto, suas relações com mamãe deixavam a desejar. Como dizia às vezes meu pai, seus gênios eram incompatíveis. Como se esse pobre velho homem tivesse morto seu bem amado, mamãe não o detestava. Ela não era nunca gentil com esse homem bom que não fazia nada para irritá-la, além do mais ajudava-a. Não o tratava jamais como o pai de seu marido, nem como o avô de seus filhos que ele amava como sua própria prole, mais sim como um estrangeiro, refugiado na casa dela. Esse velho gentil, doce e amável, aos olhos de mamãe, se é que se pode dizer, não era mais que uma cadeira velha, quebrada, que ela não podia vender a um mercador de velharias, com medo de irritar papai... Ela não lhe falava nunca, nem mesmo olhava em seu rosto... A palavra papai era desconhecida para ela quando se tratava de seu sogro. Quando tinha qualquer coisa para lhe dizer, mamãe tinha o hábito de falar ao público, como se ela anunciasse uma ordem real. Arrume rápido o quarto ! Tire esses jornais de minha frente ! Os sapatos da criança – que sou eu – estão precisando de reparos, que se faça rápido, se não, neste calor esmagador do verão de Istambul, os novos sapatos se estragarão em dois dias !... Isso acontecia somente entre nós, é claro. Na presença dos outros, ela esquecia sua existência, ou se continha com um simples “Senhor Nihat”, depois de uma frase composta de algumas palavras insossas, secas e frias como por exemplo: “E o senhor ? Quer alguns senhor Nihat ?” Ela segurava o prato de biscoitos, ou mesmo o pote de cristal cheio de bombons recheados de amêndoas que tinha escondido debaixo dos chocolates ou sob o frasco de água de colônia – mamãe amava esse frasco quase ordinário de gargalo estreito e com a base particularmente larga que ela tinha guardado e não utilizava outra coisa, quando ele estava vazio, ela me mandava encher, não sem antes fazer uma longa prece para que eu não o quebrasse – vendo meu avô colocar a mão sobre o peito, com um gentil “Obrigado, minha filha”, inclinando a cabeça, eu engolia minha cólera. Isso me deixava tão nervoso que tinha vontade de arrancar o prato de suas mãos e quebrá-lo, ou mesmo quebrar o famoso frasco, e depois de tudo, bater na barriga da perna de minha mãe com meus pequenos pulsos, até que elas ficassem completamente roxas... Ou ainda, até que ela abandonasse esse comportamento inumano, e adquirisse o hábito de lhe dizer: “ E você papai ? Quer um ?”, e vê-la dar-lhe o prato.... Mas eu era incapaz de fazê-lo, pois tinha medo dela. Em efeito, se ele não se preocupasse tanto comigo, eu poderia fazê-lo sem qualquer medo, mas eu tinha medo por causa de meu avô. Se eu tivesse certeza que mamãe se contentaria simplesmente em me privar das refeições quentes, dando-me apenas uma fatia de pão depois de uma surra, me trancar dentro de um buraco escuro debaixo da escada, e deixar-me preso debaixo da escada não era a maior das minhas preocupações. Eu estava pronto para receber a surra até que minhas costas estivessem roxas, ou a ficar privado de ir ao cinema, aos bares nas praias, ou mesmo ao parque de diversões. Mamãe poderia me colocar trancado a chaves ou dar ao filho da vizinha meu paletó azul marinho que minha tia tinha trazido de uma viagem à Áustria, isso tudo não me faria sofrer, eu acreditava que minha mãe ia tomar meu avô como alvo, e seria ele que pagaria por tudo. Eu conhecia bem minha mãe. Ela interpretaria minha reação como uma provocação da parte de meu avô, e o acusaria de provocar uma criança – talvez quando eu me tornasse um jovem homem, em idade de casar – que não lhe chegasse nem mesmo aos ombros, eu a esganaria. Ela se metia a difamá-lo, não importa onde, nem em presença de quem. “Sim meus queridos, dizia ela, Deus nos deu um sofrimento sinistro que eu não desejo nem mesmo aos meus inimigos...” Vendo suas amigas a apoiá-la em suas questões, depois de sacudir o colarinho de seu robe roxo – ela preferia as cores de tom violeta – e tocar o com o indicador o carvalho da biblioteca, ela continuava: “Esse velhote, essa serpente fingida, transformou meu próprio filho em adversário obstinado, o filho que eu portei durante nove meses em minha barriga. Ele o toma pelo braço, leva-o ao campo, dizendo que é para brincar com uma pipa, ou para contemplar os pescadores na praia. Ele leva essa criança para enchê-la de raiva contra mim...” Ela diria o mesmo para meu pai. Mas com ele, ela não encontrava uma razão, ou mesmo um pretexto. Sempre esperava o momento propício para queixar-se de meu avô. E na maioria das vezes, fazia-o no quarto antes de dormir. Depois que estivessem deitados, sua voz ressonante fazia-se ouvir por muito tempo. Jamais se ouvia papai, apenas raramente ele se pronunciava. Quer dizer, uma cólera lhe subia à cabeça. E nesse momento, eu tinha a impressão que o copo de água que se encontrava sobre o criado mudo ao lado de minha cama, tremia. Depois dessa tempestade, batia a porta com força. Então, sentava-se em frente à janela que dava para a varanda, até altas horas, e forçava um sorriso para que meu avô não percebesse o incidente... Suas brincadeiras artificiais, suas palhaçadas secas, não mudavam nada. A bomba estava pronta para explodir, o ar dominador e assustador de mamãe planava sobre nós. Além do mais, havia uma diferença entre a atitude de mamãe e de uma bomba explosiva. Podíamos olhar a bomba com medo, era-nos impossível de fazê-lo com mamãe. Éramos obrigados a dissimular o medo que ela nos dava, e fazer como se uma coisa dessas jamais se passava, e jogar o jogo como se nada acontecesse. Dissimulando a raiva, devíamos falar, brincar, sorrir e mesmo rir alto; a atmosfera habitual de nossa casa devia ser mantida a todo custo... Sem dúvida, não podíamos dizer que papai guardava eternamente o silêncio e que ele aceitava tudo que ela dizia. Raramente, podíamos escutar a voz de papai se elevar. De tempos em tempos, nervoso, ele se metia à gritar. Ele dizia à mamãe que essa atmosfera não podia continuar. Ele pedia para que ela esquecesse esse pobre velho, ou mesmo dizia que ia deixar a casa. Mas eram apenas palavras ! Depois de tudo, nem mamãe, nem papai deixavam - queria meu avô e eu – nem mudavam para uma outra casa, como ele falava sempre. Uma atmosfera glacial ficou em nossa casa por dois ou três dias. Um silêncio arrasador... Todo mundo estava frio, mudo... Passávamos de um cômodo para outro nesse silêncio de cemitério, nas pontas dos pés, evitando até respirar mais forte, sentindo o vento entrar pela janela entreaberta, o frescor desse vento aumentava mais a tensão que restava dentro de casa. Enjoados pelo odor desagradável do restaurante vizinho, sentíamo-nos quase doentes e deprimidos, pois apenas sentíamos esse odor nesses momentos. Durante as horas de leitura tentávamos nem mesmo fazer barulho com as folhas... Dificilmente escutávamos os programas radiofônicos, pois baixávamos o volume do rádio... Depois de alguns dias, tudo tinha voltava ao normal. No fim de um período de 3 ou 4 dias, papai levava de novo sua almofada que ficava sobre o canapé da sala de estar, para seu quarto de dormir, vizinho daquele onde dormíamos eu e meu avô. Mamãe ficava jovial e contente. Uma vez, reencontrada essa jovialidade e essa alegria, ela deixava de bater as louças e de pisar forte sobre o assoalho, a tal ponto que tínhamos a impressão que se tratava de um ferreiro malhando o ferro. Isso significava que mamãe tinha de novo as rédeas nas mãos. Depois de escapar do caos, ela se sentia bruscamente leve e frívola como um pássaro, pois durante essa chateação, onde meu avô e eu nos esforçávamos de nada fazer para deixá-la nervosa, ou melhor, nós éramos nosso próprio carrasco, mamãe se sentia sem dúvidas, melhor que nós. Meu pai tinha uma personalidade estranha. Notadamente nos momentos de cólera – ele se irritava raramente, mas quando isso acontecia, ele ficava arrasado; e a causa dessa cólera era sempre o conflito entre mamãe e vovô – ele não queria mais nada. Ele quebrava tudo, como por exemplo, a jarra, o copo e mesmo os pratos de porcelana fina que mamãe guardava como as meninas de seus olhos.... Em efeito, mamãe não estava no ponto de aceitar facilmente. Ser menosprezada por seu marido, ter os livros sendo lançados pela casa, escutar a voz de papai se erguer... todas essas coisas a desanimava, ela se sentia infeliz e assediada. Em momentos iguais, ela se sentia como uma jovem recém-casada voltando para a casa dos pais, e se considerava desencorajada, perdida em sua auto-estima, como a filha da dona da mercearia que morava no andar térreo do prédio vizinho. Ela havia voltado para a casa de sua mãe no fim de um matrimônio de algumas semanas com um famoso adendo cultural, o grande orgulho da dona da mercearia, e tinha perdido sua estima aos olhos de todo mundo. Minha mãe considerava meu pai como o dólar americano que se valoriza todos os dias frente ao nosso dinheiro, e constatando sua própria desvalorização, se afligia fortemente. Ela esperava a ocasião, ensaiava de encontrar meios de voltar a ser a única a nos dominar…... |
OS ÚLTÝMOS DÝAS DE MEU AVÔ |
Traduzido por Celso ROCHA |
Extração |
UM CONTO DE MUSTAFA BALEL |