Os viajantes, surpresos, olharam por instantes o garoto e o senhor.
O senhor, um homem feito, de cerca de cinqüenta anos, com seus óculos e
um guardanapo nas mãos, o ventre rechonchudo que ameaçava soltar os
botões de sua roupa, suas costeletas grisalhas, seu queixo duplo
formando várias dobras. O nó da gravata de seda branca com pequenos
pontos vermelhos, denunciava possivelmente uma pessoa de classe
superior.
“Escute, repetia o controlador, você cometeu um crime, devolva o
dinheiro que roubou !....”
O controlador elevava a voz em crescendo e gaguejava de vez em quando.
As bochechas vermelhas e os grandes olhos abertos, não sabiam o que
fazer. Agarrou o garoto pelo ombro e estava na eminência de sacudi-lo.
Imobilizado sobre o assento coberto de linho verde, o garoto tentava
libertar seu ombro. Com suas grossas mãos calejadas, tentava retirar a
mão que segurava seu ombro, olhando ao redor com ar pasmado, como se
solicitasse a ajuda dos viajantes. Seus olhos fixaram-se sobre um tipo
moreno, baixo, sentado ao seu lado: um homem de ombros largos, perdido
dentro de um velho casaco amplo com riscos cinzas sobre um fundo
avermelhado e que sobre os ombros apresentava uma peça de tecido
costurado às pressas com linha branca... Em um momento de hesitação, ele
cochicha um pouco. O tipo, depois de uma breve e decidida réplica,
desvia seu grandes olhos injetados de sangue e se põe a olhar pela
janela do trem.
O controlador não soltava o ombro do garoto. Segurava-o firme e
lançava-lhe uma enxurrada de ameaças.
Em seguida, constatando que a força não resolvia o problema, tenta ser
mais doce:
“Escute garoto, disse ele, você ainda é uma criança. Pode ser que alguém
tenha escondido e você pegou...”
O homem sentado ao lado da janela, forte, provavelmente um ferroviário a
julgar pelas suas vestes inerentes a esse tipo de trabalhador , não
conseguiu suportar esse espetáculo por muito tempo:
“Deixe-o em paz ! Interviu - o pobre garoto passou a noite toda sobre
o bagageiro !”
Todo exposto e com uma mão no bagageiro, ele ajeitou a aba do casaco do
controlador com a outra e explicou:
“Eu tomei o trem em Kayseri, às 10 horas da noite, e ele já estava lá,
estava para descer a qualquer instante.”
Após uma pequena pausa para limpar a garganta, acrescenta:
“Então ! Tem muitas pessoas aqui, interrogue-as ! E que digam a verdade,
pelo amor de Deus !”
O controlador olha para os viajantes:
Com um sinal de interesse, mas sem palavras, uma senhora de certa idade
que estava sentada perto do ferroviário, entregou-se novamente à leitura
de um livro. Ela segurava sua sacola de couro cor de osso, que tinha
colocado como um obstáculo entre ela e o ferroviário, e lia
vagarosamente sua revista enquanto fumava. Que será que pensam os outros
? Devem estar irritados com ela, pois fumava. Talvez pensassem que
fosse cristã, ou judia, pois não respeitava o Ramadã. Pensavam, sem
dúvida, que uma pessoa em sua idade, não poderia ser muçulmana, nem
judia, pois fumava e beliscava de tempos em tempos pequenos doces. Já
ao amanhecer quando tinha acendido seu primeiro cigarro, o camponês
barbado a tinha olhado longamente e murmurado qualquer coisa
incompreensível. Ele tinha se agitado por instantes, como que ensaiando
expressar por gestos seu contentamento que não conseguia expressar por
palavras. Bem ! Este garoto cujo bigode lembra o rabo de um rato, que
apito ele toca ? Ele também tinha achado estranho que ela fumasse em
pleno Ramadã. Ele havia tocado os joelhos do velho barbado e tentava
fazê-lo compreender por alusão, tentando expressar qualquer coisa. Como
esse fedelho é inexperiente !... Com certeza jamais fora a um baile,
nem a um coquetel, nem mesmo a uma festa surpresa. E se alguém lhe falar
de Paganini ou mesmo de Liszt, com certeza não saberá de quem se trata.
E se alguém lhe falar de Mozart, ele ficará de boca aberta ! Não sabe
nem mesmo escolher a cor de sua camisa; esse garoto mal trapilho que
ousava a olhar insistentemente com ironia! Olhe sua aparência! Pelo amor
de Deus, que tem ele de bonito ?... Jamais viu uma escova de dentes; e
não obstante seus dentes sujos, permite-se brincar com uma dama que
poderia ser sua mãe. Olhe a camisa que veste esse porco ! Que horror
!... E pode-se dizer que comprou a camisa justamente para vesti-la !
Ela não permitiria nem mesmo a um empregado seu vestir uma camisa
parecida! Oh!la!la!... Ela não é o gênero de pessoa que viaja com tal
companhia, mas não pode fazer nada. A sorte tinha reunido todas as
condições desfavoráveis: o corpo delicado de seu filho não suportara as
condições do serviço militar e adoeceu; e com o tempo que fazia, os vôos
para Diyarbakir, a cidade do sudeste, tinham sidos cancelados; tinha
medo de viajar de automóvel e ainda por cima, por ocasião das festas
do Ramadã, todos os lugares estavam reservados; e não tinha encontrado
mais nenhum lugar, a não ser essa cabine de décima classe.
Ela deixa deslizar o olhar pelo garoto e fixa-o em um indivíduo moreno e
enrugado dentro de um casaco cinza, sentado ao lado do rapaz. Um par de
olhos injetados de sangue e exorbitados a lamber suas coxas rechonchudas
sob sua saia arregaçada. Ela arruma-se docemente e pega um pull-over
marrom que estava no porta bagagem e o coloca sobre sua saia cor de
romã. O garoto tenta falar e explicar qualquer coisa ao controlador, mas
ela não conseguia compreender o que ele queria dizer. Parecia que falava
uma outra língua, quem sabe curdo. Pelos seus gestos, poderia estar
dizendo que não era ele quem tinha roubado o dinheiro. Por outro lado,
no momento em que o controlador vinha pegar o colete é que tinha
reparado seu aspecto. Somente naquele instante reparou que alguém dormia
sobre o porta bagagem, mas ela não tinha colocado reparo. Aqui está o
garoto ! Não tinha visto-o sair do compartimento, mas o que podia fazer
! Não queria se envolver com assuntos que não lhe eram pertinentes. Não
cabia a ela dizer que era impossível que o garoto tinha roubado. De mais
a mais, se tentasse fazê-lo, teria um monte de dificuldades. Os
interrogatórios, os processos verbais, as identificações para o
depoimento... Ela não suportaria tudo isso. Por outro lado, isso nem
valeria a pena. E quem sabe ele tinha mesmo roubado, porquê não ? Olhe a
sua aparência, teria ele um ar de criança de doze anos ? Seu olhares
atravessados, suas rugas sobre seu rosto, suas atitudes decididas,
impetuosas, seus gestos seguros de si e suas mãos!... De mais em mais,
não tinha razão em acreditar que o tipo que esperava no corredor, ao
lado do controlador, não tinha dito a verdade. Ele tem uma certa idade,
e está bem vestido e é até bonito. Seu falar sério, tudo confirmava sua
educação. Se não tinha certeza, porque mentiria ? Não há nada a repartir
com esse garoto curdo. E com certeza ele tinha roubado....
“Meus olhos não conseguem distinguir muito bem...”
Logo, todos os olhares se voltaram sobre o velho barbado que tinha
pronunciado essa frase com entonação e um voz forte.
O controlador olha à sua volta. O velho está sentado sobre uma de suas
pernas dobrada, tinha colocado seu boné de lado, virado para os outros e
olhava em volta.
“O que disse tio ?...” Fez o controlador pleno de curiosidade.
“Meus olhos não distinguem muito bem...” repetiu o velho, virando a
cabeça em direção a ele, com o queixo nas mãos. E acrescentou em um
trago:
“Eu não vejo mais que silhuetas, isso é tudo. Eu não consigo distinguir
os traços nessa minha idade....”
O controlador não compreendeu nada. Como se ensaiasse compreender as
divagações do velho, põe um olhar interrogador sobre o rapaz com o
bigode de rato.
Acreditou que o senhor o interrogou para fazê-lo testemunhar. Disse que
nada viu e que não sabe se o garoto havia saido da cabine, disse o
garoto em face do velho homem.
Houve um momento de silêncio. Os viajantes se olharam. Um sorriso de
pena se fez sobre seus lábios.
Então o espetáculo começa. A dama se coloca a roer os lábios, e tenta
não perder seu ar sério; o jovem moreno se põe a rir escandalosamente e
a bater os joelhos enquanto o ferroviário balançava a cabeça
vagarosamente. Os dois outros vizinhos da dama, ficam sem reação. Estão
perdidos em sua própria desgraça e não conseguem enxergar o que se
passa sob seus olhos. O pobre homem não teve nem mesmo tempo de rir. Sua
mulher estava gravemente doente, ele a tinha sobre os joelhos, tentava
sufocar seus gemidos e enxugar o suor sobre sua fronte para impedir que
escorregasse sobre os olhos. Tentava fazê-la chupar uma laranja, gomo
por gomo. Ora, esforçava-se por mostrar-se alegre e tentava brincar,
ora, colocava-se a suplicar com uma voz doce, um olhar afetuoso e a
acariciar a fronte e os braços. Não pensava a não ser em sua esposa, a
esposa fiél que ria e que chorava com ele, que não poupava nada por seu
marido. A pobre mulher não se curaria jamais. Quem sabe morreria antes
de voltar para sua vila. Se essa desgraça acontecesse, que faria ele sem
ela? Totalmente só! À sua idade, não seria fácil se virar ! Uma vez sua
esposa morta, não poderá encontrar outra pessoa para cuidar dele. E
quando estivar doente por sua vez, não terá ninguém para dar-lhe um
copo de água. É por isso que tinha chorado durante noites e pedido a
Deus para curar sua esposa. E tinha maldito a sorte... Tinha feito o seu
melhor, ele a tinha acompanhado até Ankara, a capital, para tentar
curá-la. Mas em vão ! Tanto fez, pois ali também ninguém tinha
encontrado um remédio... De todo jeito, os médicos da capital não se
ocupam totalmente bem de seus pacientes.
“Vamos garoto, pare de se fazer inocente, se não eu vou lhe revistar,
disse o controlador ao garoto em tom ameaçador. E se eu encontrar o
dinheiro com você, levo-o para os policiais. E na delegacia você vai
ver o que vão fazer!”
Ao proferir estas ameaças, levantou o queixo do garoto com o dorso da
mão.
O garoto estava determinado a falar, mas era-lhe impossível. Observou a
aparência dos viajantes. De súbito, pensa em quaisquer palavras para
exprimir sua inocência, seu rosto, todo vermelho ilumina-se e exclama:
“Eu não roubei... Eu não tenho o dinheiro.... Quem disse que eu roubei
?...”
Depois volta seu rosto para a mulher do lado e lhe diz algumas
palavras.
O controlador indaga ao tipo:
“O que disse ele ? Você, você compreende sua língua...
”
“Não”, replica para o outro, sobressaltado como se tivesse-lhe caído
um raio. “Ele fala um outro dialeto curdo. Eu não falo mais que
zaza...”
O controlador pousa novamente o olhar sobre o garoto. E o indivíduo
parece mais aliviado. Seca seu rosto esforçando-se em não atrair a
atenção do controlador. E então congela-se de novo. Estava tão
perturbado que não sabia o que fazer. Seus olhos exorbitantes pareciam
crescer e ficar cada vez mais vermelhos, seu pescoço atarracado parecia
se cravar dentro dos ombros ósseos. Em um breve momento, colocou suas
mãos sobre os joelhos, e logo as cruzou sobre o peito, e deixou-as
cair sobre o assento. Seus olhos manifestavam o mesmo nervosismo.
Agitavam-se sem folga, procurando um ponto para fixar-se imediatamente.
Sacramento! Porque a sorte se fez dessa forma ? Se lhe revistarem, o
que fará ele ? Em que pensará essa gente quando encontrarem o dinheiro
dentro de seu bolso ? E de mais em mais, estritamente a quantia
procurada !... Esse é um dinheiro ganho honestamente, mas como convencer
os guardas ? O comissariado, os guardas... Ou de outra forma: a tortura
!... As matracas.... Os machucados feitos pelos golpes de matracas...
Bem dirá que é o salário de seu trabalho de oito meses. Tentará explicar
que tinha ido a Istambul para trabalhar na construção civil junto com
seu sobrinho, longe do aconchego do lar, a centenas de quilômetros de
sua cidade... De súbito, lamenta-se de não ter ajudado Cekko, que lhe
tinha pedido emprestado pelo menos a metade do dinheiro ganho. O pobre
estava em trânsito de casar seus filhos. Precisava do dinheiro. E além
do mais, havia prometido que lhe reembolsaria na primavera, assim que
recebesse o crédito do banco agrícola... Se ao menos tivesse emprestado,
não estaria nesse problema. Era um erro e ele bem que merecia !... É
certo que alguém tinha cometido um roubo. E a soma que tinha no bolse
era quase a mesma. Revoltou-se por não saber falar turco para se
exprimir. Revoltou-se com seu pai por não ter-lhe dado escola: poderia
ter-se instruido e aprendido a língua. Se sair dessa situação vai
matricular seus dois filhos, Seydo e Cafo na escola a qualquer custo. A
escola mais próxima se encontrava em Dellidjé ou em Sékolou, nas cidades
vizinhas, mais ele faria isso. Mesmo que lhe custasse caro, enviaria
seus dois filhos à escola. Para as filhas, não era importante, mas para
os meninos era necessário. Desse forma, não teriam jamais a ocasião de
maldizer a ignorância e a reprovação que endereçava ao seu pai nessa
hora. Não serão explorados e nem mesmo maltratados.
O trem mudou o rumo. As encostas cobertas de choupos cederam lugar às
acássias que pareciam imensas bolas de neve, alinhadas nos dois lados
dos trilhos. Como o trem reduzia de pouco em pouco a velocidade, era
possível distinguir os detalhes da paisagem. Podia-se perceber os
pequenos edifícios pintados de amarelo sujo, disperçados aqui e lá
entre as acácias assim que os vagões de carga passavam pelos trilhos
vizinhos.
Pego pelo desânimo, o controlador volta-se ao “senhor” como para
perguntar-lhe o que deveria fazer. Mas ele se choca com uma aparência
inexpressiva. Seu rosto congelado, insosso e desprovido de vivacidade
que não trazia nenhum sentimento, a não ser medo e ameaça. Em face
desse rosto mumificado e sem vida, em face desse olhar glacial e cheio
de ameaça, ele se remete de novo ao garoto. Essa situação tornava-se
cada vez mais irritante!... Não era por esse pequeno caso que
arriscaria sua carreira. Tinha sido controlador a anos. Tinha trabalhado
nas pequenas cidades anatolienses por quinze anos, para ser nomeado a
Istambul, e essa já era uma outra história: encontrar um pistolão,
lisongear os superiores, lamber o cú dos diretores... Além do mais, não
sabiam o que fazer com o garoto... E quanto ao “senhor”, ele não era
qualquer um. A julgar pelas roupas que ele traja, poderia ser qualquer
um. Quem seria ? Um diretor geral ? Um chefe de partido político ?
Poderia até ser um deputado... Porque não ? Pelo seu terno, qualquer
um poderia dizer que era obra de um dos melhores alfaiates de Istambul
ou de Ankara... Além do mais, viajava em um compartimento de primeira
classe e, se podia ter um lugar de primeira classe, deveria
verdadeiramente ser uma pessoa muito importante. Assim, melhor não o
contrariar. Na sua idade não poderia mais suportar o exílio e viver de
novo com uma moeda perdida.
“Levem-no, merda !” disse ao garoto com uma voz forte e cheia de
brutalidade. “Eu vou revistá-lo...”
O garoto colocou-se prontamente e começou a despejar seus bolsos.
Colocou tudo que havia sobre o assento: um pente com alguns dentes
quebrados, um espelho partido ao meio, um maço de cigarros baratos, uma
caixa de fósforos, um lenço amaçado... O controlador olhou todos esses
objetos e os bolsos colocados no avesso. Ele não sabia o que fazer.
Depois de um momento de hesitação, pegou a mochila escura e abriu.
Encontrou uma pequena moeda e dois botões incompletos.
Um viajante loiro que aguardava em pé em frente a janela do corredor e
seguia os fatos com interesse, se endereça ao controlador sem que ele
tenha pedido sua opinião e grita-lhe como para fazer-se entender ao
“senhor”:
"É
a falta de responsabilidade que permite a esse gênero de pessoa a tomar
o trem. Oh ! la! La! Esse tipo de gente ! Eu os conheço ! Eles são
capazes de tudo. Se puderem, roubam-nos até a pele.
"
O “senhor” direciona-lhe um golpe de olhar frio e inexpressivo,
observa-o da cabeça aos pés e volta-se precipitadamente sobre sua
pequena caderneta como se tentasse decifrar o escrito afastando e
reaproximando dos seus óculos.
Um cidadão, com as costas apoiadas contra a parede do vagão e que
estava enrolando um cigarro: após umidecer uma parte do papel do cigarro
e colá-lo, endereça-se ao loiro que havia acusado os dois cidadãos do
compartimento:
“Que bicho lhe mordeu ? Ninguém pediu sua opinião” disse ele. “Você
acredita que o dinheiro que eles pagaram é da escravidão branca ? Não
podemos deixá-los viajar como todo mundo ? A estrada de ferro não é
privada... Quando se paga, tem-se o direito de viajar...”
O controlador diz:
“Basta”
O velho cidadão prontamente, senta-se sobre o botijão de gás e põe-se a
fumar nervosamente.
O controlador tinha revistado o garoto, todos os seus bolsos estavam
vistos.
O vizinho do garoto, não estava muito confortado. Sentia-se culpado e
tinha medo de ser preso. Sua hora havia chegado. Uma vez convencido que
não era o garoto que tinha roubado, era necessário que o controlador
encontrasse um culpado. E esse seria certamente ele. Posto que os outros
não inspiravam-lhe confiança, ele seria o próximo acusado. E o que
diria quando encontrarem o dinheiro no seu bolso ? Essa será uma outra
história!... Temia por ter o pequeno junto dele. Não era mais um garoto
esse patife. Sabia tudo... Sabia se arranjar. Sabia fumar escondido,
sabia surripiar o dinheiro do bolso para ir ao cinema. E eles já tinham
ido uma vez ao bordel... Assim, ele saberia se virar. Então, porque seus
parentes tinham-no confiado ? Que fazer ? Assim que o controlador vir o
dinheiro, o enviará ao comissariado. E lá, será paulada !... Tanto que
não se contentarão mais de bater-lhe: vão arrancar-lhe quem sabe as
unhas. Farão passar por toda sorte de torturas. Conhecia bem o
comissariado de polícia...
Seu olhar fixa, de súbito, seus dedos do pé que saiam pelos furos dos
sapatos usados. Tinha a impressão que as rodas gemiam, como se tivessem
que a duras penas suportar o peso do trem sobre os trilhos. Mas ele não
estava consciente de tudo o que se passava. Não tinha notado que se
aproximavam da estação, nem mesmo que a dama já estava começando a comer
seu pequeno almoço composto por um par de bananas, um suco de laranja e
pequenos bastões salgados. Ela observava com os cantos dos olhos sua
boca que remoia e revolvia um diálogo interior. O pobre bom homem ! Ele
não pensava em outra coisa se não a desgraça. As histórias de polícia,
ele conhecia bem ! Quando era pequeno, eles vinham nas vilas e batiam
nas pessoas, homens, mulheres e crianças... Para obter os nomes daqueles
que cultivavam o tabaco, para saber onde se escondia um desertor, ou não
importa qual fosse o pretexto. Pensava sobretudo naquilo que
acontecera-lhe pessoalmente. Quando tinha quatorze anos, encontrava-se
com um companheiro de sua idade em uma cidade vizinha. Estavam com
vontade de fumar um cigarro, mas não tinham nenhum, nem mesmo o dinheiro
para comprar. Constatando que os jovens cidadãos fumavam, tinham
vontade de pelo menos um. Mas como procurar ?... Passando por uma longa
rua deserta, encontraram um homem que fumava, e esperavam que ele
jogasse fora a bituca. A perseguição tinha durado, mas o tipo não jogou
fora prontamente a bituca... No momento em que pensavam que não a teriam
jamais, estavam renunciando a essa perseguição interminável, então a
bituca foi para o chão! E estavam prestes a pegá-la, mas, ô desgraça ! O
tipo voltou e amassou a bituca com os pés. Como se essa descrição não
bastasse, o tipo, enquanto eles pegavam a bituca, voltou acompanhado de
dois policiais, e os levaram ao comissariado. E lá bateram-lhe
consideravelmente. E foi justamente após esse incidente que passou a
ter medo da polícia e dos policiais.... E agora, por causa desse garoto
besta, por causa de sua expressão criminosa, ele terá dissabores. O
comissariado, o tribunal.... Terá tantas dificuldades com essa
aparência; e com a linguagem também, já que ele não sabe se expressar.
Ainda mais com esse adversário que possui uma aparência tão considerável
! Não escutarão o que disser. Vão prendê-lo por um roubo que ele nega
ter cometido.
E então, o que fazer ? Como agir ? Retirar-se e jogar o dinheiro pela
janela, às escondidas ? Ou entregá-lo ao “senhor” após se desculpar em
nome do rapaz, e dizer que ele cometeu um erro, que ele roubou ?... Os
dois precisam ter um meio bem lógico para se desembaraçar. Mas não
poderá fazer nem um nem outro. Havia tanta gente que esperava esse
dinheiro para se alimentar, para se vestir. Suas seis crianças, sua
esposa, os parentes e os irmãos de seus parentes !... Além do mais, não
se ganha facilmente essa soma nos dias atuais. O trabalho na construção
é difícil; eles não haviam suportado as más condições de alimentação e
de hospedagem por quatro meses para então jogar fora num piscar de
olhos, dinheiro ganho com dificuldade... Mesmo ao preço de sua vida, não
poderia desfazer-se do dinheiro que tinha dentro do bolso.
O trem havia diminuído a marcha, podia-se notar facilmente que entraria
na estação a qualquer momento. Seu apito retinia nas paredes das
construções e repetia-se em ecos.
O controlador levanta os ombros e diz com uma voz decidida:
“Dentre de alguns minutos, o trem estacionará e eu o levarei ao
comissariado... Lá, o “trabalho” será entre você e o “senhor”...”
Logo que disse isso, agarrou o garoto pelo braço e tentou arrastá-lo
pelo corredor. Nesse meio tempo, dois outros controladores e o chefe do
trem tinham aparecido no corredor, bem em frente à porta da cabine e
preparavam-se para ajudar o colega.
O tipo crispado com o coração ardendo dentro de seu casaco, teria
tentado se precipitar e salvar seu sobrinho das mãos do controlador,
mais o medo impedia-lhe. No fim de tudo isso, teria a delegacia, o
tribunal e a prisão... E uma porção de crianças e sua esposa que
aguardariam ansiosamente seu retorno para a miséria... Ficou
petrificado. Achava melhor não reagir, assim, ninguém saberia que era
seu tio. Fez uma expressão de estrangeiro. Achava melhor que levassem
apenas o garoto... Dariam-lhe uma surra, colocariam-no em uma cela e por
fim o libertariam...
O trem pára. O garoto que os três controladores carregavam pelo corredor
com dificuldade, gritava, hurrava e, com a ajuda de gestos, queria
expressar que não tinha roubado nada.
Os viajantes olharam-se, uns aos outros, sem nada dizer. Apenas a dama
teria reagido em face dos gritos agudos e dos hurros surdos. Ela procura
tapar os ouvidos com as mãos, e com um gesto decidido pegou seu casaco
largo e fechou a porta.
Uma vez a porta fechada, os gritos pararam. Os controladores deviam ter
afastado o garoto nesse meio tempo. Fez-se um longo silêncio na cabine.
Todos entenderam o suspiro do tio do garoto, o estalar dos dedos do
ferroviário e de tempos em tempos a batida dos falsos dentes do velho,
que murmurava preces, e muito raramente os gemidos da boa esposa doente
que sofria.
A dama havia comido seu pequeno almoço e procurava febrilmente dentro de
sua bolsa seu isqueiro de ouro, a fim de acender seu cigarro que
esperava entre seus lábios já a alguns instantes. Todos estavam
mergulhados em seus interiores. E os objetos que o garoto tinha tirado
dos bolsos, no momento da revista, jaziam sobre o assento de linho
verde. O maço de cigarros baratos, o pente com dentes quebrados, a caixa
de fósforos, a moeda e os botões quebrados sobre a mochila suja...
Nada faltava, a não ser o espelho que com o balanço do trem tinha caído
e quebrado. Os pequenos cacos cintilavam sob o sol que penetrava pela
janela...
Traduzido por Celso ROCHA
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