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OS ÚLTÝMOS DÝAS DE MEU AVÔ *   
O ESPELHO *   

GALATA-Istanbul



           O ESPELHO

           Mustafa BALEL

 

Os viajantes, surpresos, olharam por instantes o garoto e o senhor. 

O senhor, um homem feito, de cerca de cinqüenta anos, com seus óculos e  um guardanapo nas mãos, o ventre rechonchudo que ameaçava soltar os botões de sua roupa, suas costeletas grisalhas, seu queixo duplo formando várias dobras. O nó da gravata de seda branca com pequenos pontos vermelhos, denunciava possivelmente uma pessoa de classe superior.  

“Escute, repetia o controlador, você cometeu um crime, devolva o dinheiro que  roubou !....” 

O controlador elevava a voz em crescendo e gaguejava de vez em quando. As bochechas vermelhas e os grandes olhos abertos,  não sabiam o que fazer. Agarrou o garoto pelo ombro e estava na eminência de sacudi-lo.  

Imobilizado sobre o assento coberto de linho verde, o garoto tentava libertar  seu ombro. Com suas grossas mãos calejadas,  tentava retirar a mão que segurava seu ombro, olhando ao redor com ar pasmado, como se solicitasse a ajuda dos viajantes. Seus olhos fixaram-se sobre um tipo moreno, baixo, sentado ao seu lado: um homem de ombros largos, perdido dentro de um velho casaco amplo com riscos cinzas sobre um fundo avermelhado e que  sobre os ombros apresentava uma peça de tecido costurado às pressas com linha branca... Em um momento de hesitação, ele cochicha um pouco. O tipo, depois de uma breve e decidida réplica, desvia seu grandes olhos injetados de sangue e se põe a olhar pela janela do trem. 

O controlador não soltava o ombro do garoto. Segurava-o  firme e lançava-lhe uma enxurrada de ameaças. 

Em seguida, constatando que a força não resolvia o problema,  tenta ser mais doce:

“Escute garoto, disse ele, você ainda é uma criança. Pode ser que alguém tenha escondido e você pegou...” 

O homem sentado ao lado da janela, forte, provavelmente um ferroviário a julgar pelas suas vestes  inerentes a esse tipo de trabalhador , não conseguiu suportar esse espetáculo por muito tempo: 

“Deixe-o em paz ! Interviu  -  o pobre garoto passou  a noite toda sobre o bagageiro !” 

Todo exposto e com uma mão no bagageiro, ele ajeitou a aba do casaco do controlador com a outra e explicou:  

“Eu tomei o trem em Kayseri, às 10 horas da noite, e ele já estava lá,  estava para descer a qualquer instante.” 

Após uma pequena pausa para limpar a garganta,  acrescenta: 

“Então ! Tem muitas pessoas aqui, interrogue-as ! E que digam a verdade, pelo amor de Deus !”  

O controlador olha para os viajantes:  

Com um sinal de interesse, mas sem palavras, uma senhora de certa idade que estava sentada perto do ferroviário, entregou-se novamente à leitura de um livro. Ela segurava sua sacola de couro cor de osso, que  tinha colocado como um obstáculo entre ela e o ferroviário, e lia vagarosamente sua revista enquanto fumava. Que será que pensam os outros ?  Devem estar irritados com ela, pois  fumava. Talvez pensassem que fosse cristã, ou judia, pois não respeitava o Ramadã. Pensavam, sem dúvida, que uma pessoa em  sua idade, não poderia ser muçulmana, nem judia, pois  fumava e beliscava de tempos em tempos pequenos doces. Já ao amanhecer quando  tinha acendido seu primeiro cigarro, o camponês barbado a tinha olhado longamente e murmurado qualquer coisa  incompreensível. Ele tinha se agitado por instantes, como que  ensaiando expressar por gestos seu contentamento que  não conseguia expressar por palavras. Bem ! Este garoto cujo bigode lembra o rabo de um rato, que apito ele toca ? Ele também tinha achado estranho que ela fumasse em pleno Ramadã. Ele havia tocado os joelhos do velho barbado e tentava fazê-lo compreender por alusão, tentando expressar qualquer coisa. Como esse fedelho é inexperiente !... Com certeza  jamais fora a um baile, nem a um coquetel, nem mesmo a uma festa surpresa. E se alguém lhe falar de Paganini ou mesmo de Liszt, com certeza não saberá de quem se trata. E se alguém lhe falar de Mozart, ele ficará de boca aberta ! Não sabe nem mesmo escolher a cor de sua camisa;  esse garoto mal trapilho que ousava a olhar insistentemente com ironia! Olhe sua aparência! Pelo amor de Deus, que tem ele de bonito ?... Jamais viu uma escova de dentes; e não obstante seus dentes sujos,  permite-se brincar com uma dama que poderia ser sua mãe. Olhe a camisa que veste esse porco ! Que horror !... E pode-se dizer que  comprou a camisa justamente para vesti-la ! Ela não permitiria nem mesmo a um  empregado seu vestir uma camisa parecida! Oh!la!la!... Ela não é o gênero de pessoa que viaja com tal companhia, mas  não pode fazer nada. A sorte tinha reunido todas as condições desfavoráveis: o corpo delicado de seu filho não suportara as condições do serviço militar e adoeceu; e com o tempo que fazia, os vôos para Diyarbakir, a cidade do sudeste, tinham sidos cancelados; tinha medo de viajar de automóvel e ainda por cima, por  ocasião  das festas  do Ramadã, todos os lugares estavam reservados; e não tinha encontrado mais nenhum lugar, a não ser essa cabine de décima classe. 

Ela deixa deslizar o olhar pelo garoto e fixa-o em um indivíduo moreno e enrugado dentro de um casaco cinza, sentado ao lado do rapaz. Um par de olhos injetados de sangue e exorbitados a lamber suas coxas rechonchudas sob sua saia arregaçada. Ela arruma-se docemente e pega um pull-over marrom que estava no porta bagagem e o coloca sobre sua saia cor de romã. O garoto tenta falar e explicar qualquer coisa ao controlador, mas ela não conseguia compreender o que ele queria dizer. Parecia que falava uma outra língua, quem sabe curdo. Pelos seus gestos,  poderia estar dizendo que não era ele quem tinha roubado o dinheiro. Por outro lado,  no momento em que o controlador vinha pegar o colete é que tinha reparado seu aspecto. Somente naquele instante reparou que alguém dormia sobre o porta bagagem, mas ela não tinha colocado reparo. Aqui está o garoto ! Não tinha visto-o sair do compartimento, mas o que  podia fazer ! Não queria se envolver com assuntos que não lhe eram pertinentes. Não cabia a ela dizer que era impossível que o garoto tinha roubado. De mais a mais, se  tentasse fazê-lo,  teria um monte de dificuldades. Os interrogatórios, os processos verbais, as identificações para o depoimento... Ela não suportaria tudo isso. Por outro lado, isso nem valeria a pena. E quem sabe ele tinha mesmo roubado, porquê não ? Olhe a sua aparência, teria ele um ar de criança de doze anos ? Seu olhares atravessados, suas rugas sobre seu rosto, suas atitudes decididas, impetuosas, seus gestos seguros de si e suas mãos!... De mais em mais,  não tinha razão em acreditar que o tipo que esperava no corredor,  ao lado do controlador, não tinha dito a verdade. Ele tem uma certa idade, e está bem vestido e é até bonito. Seu falar sério, tudo confirmava sua educação. Se não tinha certeza, porque mentiria ? Não há nada a repartir com esse garoto curdo. E com certeza ele tinha roubado.... 

“Meus olhos não conseguem distinguir muito bem...”  

Logo, todos os olhares se voltaram sobre o velho barbado que tinha pronunciado essa frase com entonação e um voz forte. 

O controlador olha à sua volta. O velho está sentado sobre uma de suas pernas dobrada, tinha colocado seu boné de lado, virado para os outros e olhava em volta. 

“O que disse tio ?...” Fez o controlador pleno de curiosidade.  

“Meus olhos não distinguem muito bem...” repetiu o velho, virando a cabeça em direção a ele, com o queixo nas mãos. E acrescentou em um trago:  

“Eu não vejo mais que silhuetas, isso é tudo. Eu não consigo distinguir os traços nessa minha idade....”  

O controlador não compreendeu nada. Como se ensaiasse compreender as divagações do velho,  põe um olhar interrogador  sobre o rapaz com o bigode de rato. 

Acreditou que o senhor o interrogou para fazê-lo testemunhar. Disse que nada viu e que não sabe se o garoto havia saido da cabine, disse   o garoto em face do velho homem.

Houve um momento de silêncio. Os viajantes se olharam. Um sorriso de pena se fez sobre seus lábios. 

Então o espetáculo começa. A dama se coloca a roer os lábios, e tenta não perder seu ar sério; o jovem moreno se põe a rir escandalosamente e a bater os joelhos enquanto o ferroviário balançava a cabeça vagarosamente. Os dois outros vizinhos da dama, ficam sem reação. Estão perdidos em sua própria desgraça e  não conseguem enxergar o que se passa sob seus olhos. O pobre homem não teve nem mesmo tempo de rir. Sua mulher estava gravemente doente, ele a tinha sobre os joelhos, tentava sufocar seus gemidos e enxugar o suor sobre sua fronte para impedir que escorregasse sobre os olhos. Tentava fazê-la chupar uma laranja, gomo por gomo. Ora, esforçava-se por  mostrar-se alegre e tentava brincar, ora, colocava-se a suplicar com uma voz doce, um olhar afetuoso e a acariciar a fronte e os braços. Não pensava a não ser em sua esposa, a esposa fiél que ria e que chorava com ele, que não poupava nada por seu marido. A pobre mulher não se curaria jamais. Quem sabe morreria antes de voltar para sua vila. Se essa desgraça acontecesse, que faria ele sem ela? Totalmente só! À sua idade, não seria fácil se virar ! Uma vez sua esposa morta,  não poderá encontrar outra pessoa para cuidar dele. E quando  estivar doente por sua vez,  não terá ninguém para dar-lhe um copo de água. É por isso que  tinha chorado durante noites e pedido a Deus para curar sua esposa. E tinha maldito a sorte... Tinha feito o seu melhor, ele a tinha acompanhado até Ankara, a capital, para tentar curá-la. Mas em vão ! Tanto fez, pois  ali também ninguém tinha encontrado um remédio... De todo jeito, os médicos da capital não se ocupam totalmente bem de seus pacientes. 

“Vamos garoto, pare de se fazer inocente, se não eu vou lhe revistar, disse o controlador ao garoto em tom ameaçador. E se eu encontrar o dinheiro com você,  levo-o para os  policiais. E na delegacia você vai ver o que vão fazer!” 

Ao proferir estas ameaças,  levantou o queixo do garoto com o dorso da mão.  

O garoto estava determinado a falar, mas era-lhe impossível. Observou a aparência dos viajantes. De súbito,  pensa em quaisquer palavras para exprimir sua inocência, seu rosto, todo vermelho ilumina-se e  exclama: 

“Eu não roubei... Eu não tenho o dinheiro.... Quem disse que eu roubei ?...” 

Depois  volta seu rosto para a mulher do lado e lhe diz algumas palavras. 

O controlador indaga ao tipo: 

“O que disse ele ? Você, você compreende sua língua... ”  

“Não”, replica  para o outro, sobressaltado como se  tivesse-lhe caído um raio. “Ele fala um outro dialeto curdo. Eu não falo mais que zaza...” 

O controlador pousa novamente o olhar sobre o garoto. E o indivíduo parece mais aliviado. Seca seu rosto esforçando-se em não atrair a atenção do controlador. E então congela-se de novo. Estava tão perturbado que não sabia o que fazer. Seus olhos exorbitantes pareciam crescer e ficar cada vez mais vermelhos, seu pescoço atarracado parecia se cravar dentro dos ombros ósseos. Em um breve momento, colocou suas mãos sobre os joelhos, e logo as cruzou  sobre o peito, e  deixou-as cair sobre o assento. Seus olhos manifestavam o mesmo nervosismo. Agitavam-se sem folga,  procurando um ponto para fixar-se imediatamente. Sacramento! Porque a sorte se fez dessa forma ? Se  lhe revistarem, o que fará ele ? Em que pensará essa gente quando encontrarem o dinheiro dentro de seu bolso ?  E de mais em mais, estritamente a quantia procurada !... Esse é um dinheiro ganho honestamente, mas como convencer os guardas ? O comissariado, os guardas... Ou de outra forma: a tortura !... As matracas.... Os machucados feitos pelos golpes de matracas... Bem dirá que é o salário de seu trabalho de oito meses. Tentará explicar que tinha ido a Istambul para trabalhar na construção civil junto com seu sobrinho, longe do aconchego do lar, a  centenas de quilômetros de sua cidade... De súbito, lamenta-se de não ter ajudado Cekko, que lhe tinha pedido emprestado pelo menos a metade do dinheiro ganho. O pobre estava em trânsito de casar seus filhos. Precisava do dinheiro. E além do mais, havia prometido que  lhe reembolsaria na primavera, assim que  recebesse o crédito do banco agrícola... Se ao menos tivesse emprestado, não estaria nesse problema. Era um erro e ele bem que merecia !...  É certo que alguém tinha cometido um roubo. E a soma que  tinha no bolse era quase a mesma. Revoltou-se por não saber falar turco para se exprimir. Revoltou-se com seu pai por não ter-lhe dado escola:  poderia ter-se instruido e aprendido a língua. Se  sair dessa situação vai matricular seus dois filhos, Seydo e Cafo na escola a qualquer custo. A escola mais próxima se encontrava em Dellidjé ou em Sékolou, nas cidades vizinhas, mais ele faria isso. Mesmo que lhe custasse caro, enviaria seus dois filhos à escola. Para as filhas, não era importante, mas para os meninos era necessário. Desse forma, não teriam jamais a ocasião de maldizer a ignorância e a reprovação que  endereçava ao seu pai nessa hora. Não serão explorados e nem mesmo maltratados. 

O trem mudou o rumo. As encostas cobertas de choupos cederam lugar às acássias que pareciam imensas bolas de neve, alinhadas nos dois lados dos trilhos. Como o trem reduzia de pouco em pouco a velocidade, era possível distinguir os detalhes da paisagem. Podia-se perceber os pequenos edifícios pintados de amarelo sujo, disperçados aqui e  lá entre as acácias assim que os vagões de carga passavam pelos trilhos vizinhos.  

Pego pelo desânimo, o controlador volta-se ao “senhor” como  para perguntar-lhe o que deveria fazer. Mas ele se choca com uma aparência inexpressiva. Seu rosto congelado, insosso e desprovido de vivacidade que não trazia nenhum sentimento,  a não ser medo e ameaça. Em face desse rosto mumificado e sem vida, em face desse olhar glacial e cheio de ameaça, ele se remete de novo ao garoto. Essa situação tornava-se cada vez mais irritante!... Não era por esse pequeno caso que  arriscaria sua carreira. Tinha sido controlador a anos. Tinha trabalhado nas pequenas cidades anatolienses por quinze anos, para ser nomeado a Istambul, e essa já era uma outra história: encontrar um pistolão, lisongear os superiores, lamber o cú dos diretores... Além do mais,  não sabiam o que fazer com o garoto... E quanto ao “senhor”, ele não era qualquer um. A julgar pelas roupas que ele traja, poderia ser qualquer um. Quem seria ? Um diretor geral ? Um chefe de partido político ? Poderia até  ser um deputado... Porque não ?  Pelo seu terno, qualquer um poderia dizer que era obra de um dos melhores alfaiates de Istambul ou de Ankara... Além do mais, viajava em um compartimento de primeira classe e, se  podia ter um lugar de primeira classe,  deveria verdadeiramente ser uma pessoa muito importante. Assim, melhor não o contrariar. Na sua idade  não poderia mais suportar o exílio e viver de novo com uma moeda perdida. 

“Levem-no, merda !” disse  ao garoto com uma voz forte e cheia de brutalidade. “Eu vou revistá-lo...” 

O garoto colocou-se prontamente e começou a despejar seus bolsos. Colocou tudo que havia sobre o assento: um pente com alguns dentes quebrados, um espelho partido ao meio, um maço de cigarros baratos, uma caixa de fósforos, um lenço amaçado... O controlador olhou todos esses objetos e os bolsos colocados no avesso. Ele não sabia o que fazer. Depois de um momento de hesitação,  pegou a mochila escura e abriu. Encontrou uma pequena moeda e dois botões incompletos. 

Um viajante loiro que aguardava em pé em frente a janela do corredor e seguia os fatos com interesse, se endereça ao controlador sem que ele tenha pedido sua opinião e grita-lhe como para  fazer-se entender ao “senhor”: 

"É a falta de responsabilidade que permite a esse gênero de pessoa a tomar o trem. Oh ! la! La! Esse tipo de gente ! Eu os conheço ! Eles são capazes de tudo. Se  puderem,  roubam-nos até a pele. " 

O “senhor”  direciona-lhe um golpe de olhar frio e inexpressivo, observa-o da cabeça aos pés e volta-se precipitadamente sobre sua pequena caderneta como se tentasse decifrar o escrito afastando e reaproximando dos seus óculos. 

Um cidadão, com as costas apoiadas contra a parede  do vagão e que estava enrolando um cigarro: após umidecer uma parte do papel do cigarro e colá-lo, endereça-se ao loiro que havia acusado os dois cidadãos do compartimento: 

“Que bicho lhe mordeu ? Ninguém pediu sua opinião” disse ele. “Você acredita que o dinheiro que eles pagaram é da escravidão branca ? Não podemos deixá-los viajar como todo mundo ?  A estrada de ferro não é privada... Quando se paga,  tem-se o direito de viajar...” 

O controlador diz:  

“Basta” 

O velho cidadão prontamente, senta-se sobre o botijão de gás e  põe-se a fumar nervosamente. 

O controlador tinha revistado o garoto, todos os seus bolsos estavam vistos. 

O vizinho do garoto, não estava muito confortado. Sentia-se culpado e tinha medo de ser preso. Sua hora havia chegado. Uma vez convencido que não era o garoto que tinha roubado, era necessário que o controlador encontrasse um culpado. E esse seria certamente ele. Posto que os outros não  inspiravam-lhe confiança, ele seria o próximo acusado. E o que diria quando encontrarem o dinheiro no seu bolso ? Essa será uma outra história!... Temia por ter o pequeno junto dele. Não era mais um garoto esse patife. Sabia tudo... Sabia se arranjar. Sabia fumar escondido,  sabia surripiar o dinheiro do bolso para ir ao cinema. E eles já tinham  ido uma vez ao bordel... Assim, ele saberia se virar. Então, porque seus parentes  tinham-no confiado ? Que fazer ? Assim que o controlador vir o dinheiro,  o enviará ao comissariado. E lá, será paulada !... Tanto que não se contentarão mais de bater-lhe: vão arrancar-lhe quem sabe as unhas. Farão passar por toda sorte de torturas. Conhecia bem o comissariado de polícia...  

Seu olhar fixa, de súbito, seus dedos do pé que saiam pelos furos dos sapatos usados. Tinha a impressão que as rodas gemiam, como se  tivessem que a duras penas suportar o peso do trem sobre os trilhos. Mas ele não estava consciente de tudo o que se passava. Não tinha notado que se aproximavam da estação, nem mesmo que a dama já estava começando a comer seu pequeno almoço composto por um par de bananas, um  suco de laranja e pequenos bastões salgados.  Ela observava com os cantos dos olhos sua boca que remoia e revolvia um diálogo interior. O  pobre bom homem ! Ele não pensava em outra coisa se não a desgraça. As histórias de polícia, ele conhecia bem ! Quando era pequeno, eles vinham nas vilas e batiam nas pessoas, homens, mulheres e crianças... Para obter os nomes daqueles que cultivavam o tabaco, para saber onde se escondia um desertor, ou não importa qual fosse o pretexto. Pensava sobretudo naquilo que acontecera-lhe pessoalmente. Quando  tinha quatorze anos,  encontrava-se com um companheiro de sua idade em uma cidade vizinha. Estavam com vontade de fumar um cigarro, mas não tinham nenhum, nem mesmo o dinheiro para comprar. Constatando que os jovens cidadãos fumavam,  tinham vontade de pelo menos um. Mas como procurar ?... Passando por uma longa rua deserta,  encontraram um homem que  fumava, e esperavam que ele jogasse fora a bituca. A perseguição tinha durado, mas o tipo não jogou fora prontamente a bituca... No momento em que pensavam que não a teriam jamais, estavam renunciando a essa perseguição interminável, então a bituca foi para o chão! E estavam prestes a pegá-la, mas, ô desgraça ! O tipo voltou e amassou a bituca com os pés. Como se essa descrição não bastasse, o tipo, enquanto eles pegavam a bituca, voltou acompanhado de dois policiais, e  os levaram ao comissariado. E lá  bateram-lhe consideravelmente. E foi justamente após esse incidente que  passou a ter medo da polícia e dos policiais.... E agora, por causa desse garoto besta, por causa de sua expressão criminosa, ele terá dissabores. O comissariado, o tribunal.... Terá tantas dificuldades com essa aparência; e com a linguagem também, já que ele não sabe se expressar. Ainda mais com esse adversário que possui uma aparência tão considerável ! Não escutarão o que  disser. Vão prendê-lo por um roubo que ele nega ter cometido. 

E então, o que fazer ? Como agir ? Retirar-se e jogar o dinheiro pela janela, às escondidas ? Ou entregá-lo ao “senhor” após se desculpar em nome do rapaz, e dizer que ele cometeu um erro, que ele roubou ?... Os dois precisam ter um meio bem lógico para se desembaraçar. Mas  não poderá fazer nem um nem outro. Havia tanta gente que esperava esse dinheiro para se alimentar, para se vestir. Suas seis crianças, sua esposa, os parentes e os irmãos de seus parentes !... Além do mais, não se ganha facilmente essa soma nos dias atuais. O trabalho na construção é difícil; eles não haviam suportado as más condições de alimentação e de hospedagem por quatro meses para então jogar fora num piscar de olhos, dinheiro ganho com dificuldade... Mesmo ao preço de sua vida, não poderia desfazer-se do dinheiro que tinha dentro do bolso. 

O trem havia diminuído a marcha, podia-se notar  facilmente que entraria na estação a qualquer momento. Seu apito retinia nas paredes das construções e repetia-se em ecos.  

O controlador levanta os ombros e diz com uma voz decidida:  

“Dentre de alguns minutos, o trem estacionará e eu o levarei ao comissariado... Lá, o “trabalho” será entre você e o “senhor”...” 

Logo que disse isso,  agarrou o garoto pelo braço e tentou arrastá-lo pelo corredor. Nesse meio tempo, dois outros controladores e o chefe do trem tinham aparecido no corredor, bem em frente à porta da cabine e preparavam-se para ajudar o colega. 

O tipo crispado com o coração ardendo dentro de seu casaco,  teria tentado se precipitar e salvar seu sobrinho das mãos do controlador, mais o medo impedia-lhe. No fim de tudo isso,  teria a delegacia, o tribunal e a prisão... E uma porção de crianças e sua esposa que aguardariam ansiosamente seu retorno para a miséria... Ficou petrificado. Achava melhor não reagir, assim, ninguém saberia que era seu tio. Fez uma expressão de estrangeiro. Achava melhor que levassem apenas o garoto... Dariam-lhe uma surra, colocariam-no em uma cela e por fim o libertariam... 

O trem pára. O garoto que os três controladores carregavam pelo corredor com dificuldade, gritava, hurrava e, com a ajuda de gestos, queria expressar que  não tinha roubado nada. 

Os viajantes olharam-se, uns aos outros, sem nada dizer. Apenas a dama teria reagido em face dos gritos agudos e dos hurros surdos. Ela procura tapar os ouvidos com as mãos, e com um gesto decidido pegou seu casaco largo e fechou a porta. 

Uma vez a porta fechada, os gritos pararam. Os controladores deviam ter afastado o garoto nesse meio tempo. Fez-se um longo silêncio na cabine. Todos entenderam o suspiro do tio do garoto, o estalar dos dedos do ferroviário e de tempos em tempos a batida dos falsos dentes do velho, que murmurava preces, e muito raramente os gemidos da boa esposa doente que sofria. 

A dama havia comido seu pequeno almoço e procurava febrilmente dentro de sua bolsa seu isqueiro de ouro, a fim de acender seu cigarro que esperava entre seus lábios já a alguns instantes. Todos estavam mergulhados em seus interiores. E os objetos que o garoto tinha tirado dos bolsos, no momento da revista, jaziam sobre o assento de linho verde. O maço de cigarros baratos, o pente com dentes quebrados, a caixa de fósforos, a moeda e os botões quebrados sobre a mochila suja... 

Nada faltava, a não ser o espelho que com o balanço do trem tinha caído e quebrado. Os pequenos cacos cintilavam sob o sol que penetrava pela janela...



              Traduzido por Celso ROCHA
 
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