Meu avô era bonito, podíamos até dizer que ele era muito bonito !
Um belo homem de aparência arredondada, terna e charmosa. Um jovem homem
velho... Ele não se parecia com esses velhos caducos, como os avós de
meus companheiros, e dos garotos da rua, curvados, dobrados em dois, com
um nariz grego parecido a uma pêra, pendendo pesada sobre o ramo,
prestes a cair; as rugas ou melhor, os sulcos de seus pescoços cheios de
sujidades de decênios e os olhos enterrados em suas órbitas e sempre
ramelosos. Ele não era do tipo que deixava chamuscar o bigode pelo
tabaco, se apressando em mergulhar em sua sopa, nem como os que têm por
habito espalhar sua saliva.
Totalmente ao contrário, ele não gostava desses tipos repugnantes. Que
tiram freqüentemente a dentadura, raspando com o dorso de um garfo e
engolindo a sujeira no fim dessa operação... Ou mesmo que deixam cair
sua dentadura em pleno público e provocar nojo. Essas lhe eram atitudes
incomuns. Em fim, mesmo que seus dentes fossem falsos, eu ignorei isso
até o dia em que pude perceber durante uma conversa. Ele tinha dentes
falsos até aqui eu não podia os distinguir em um pote de iogurte!...
Ele não fazia parte dos velhos que se negligenciavam. De manhã, quando
acordava, ele tomava uma ducha quente. Era já um hábito. Nem o frio, nem
a doença - a menos que ele estivesse doente a ponto de ficar acamado –
podiam lhe impedir... Ele não saía jamais do banheiro sem antes se
pentear – seus cabelos brancos, eram abundantes – e de cortar o bigode,
com a ajuda de suas pequenas tesouras. Em seguida, ele passava sua
camisa sobre a qual juntava um casaco trespassado. Colocava sua calça,
instalava-se em seu banco de palha e se punha a ler o jornal. Depois de
tomar o café da manhã, se fechava em no quarto para passar suas roupas,
dobrar as meias, que ele tinha lavado nas vésperas, arrumar sua cama e
seu quarto.
Mais tarde ele saía e se ocupava do jardim. As árvores e as flores que
ornavam nosso jardim eram obras de seu trabalho. Quando alguém chegava,
ele trocava rápido sua calça e seus chinelos ordinários por aqueles de
festa que estavam aos pés da cama, dava corda em seu relógio, e
perfumava suas mãos com água de colônia. Vinha então até a sala,
cumprimentava a visita com um respeitoso “seja bem vindo!”. Se instalava
em seu banco e se colocava a escutar, com um doce sorriso nos lábios.
Ele não falava jamais sem ser interrogado. Achava inconcebível vir à
uma reunião de família sem seu casaco. Cortar as unhas não importa onde,
tirar os sapatos ou deixar as roupas sobre o assento; ficar dormindo em
frente à TV, falar a toda hora de doença, dos males de seu estômago, de
seus rins... Eram coisas que ele detestava.
Portanto, suas relações com mamãe deixavam a desejar. Como dizia às
vezes meu pai, seus gênios eram incompatíveis. Como se esse pobre velho
homem tivesse morto seu bem amado, mamãe não o detestava. Ela não era
nunca gentil com esse homem bom que não fazia nada para irritá-la, além
do mais ajudava-a. Não o tratava jamais como o pai de seu marido, nem
como o avô de seus filhos que ele amava como sua própria prole, mais sim
como um estrangeiro, refugiado na casa dela. Esse velho gentil, doce e
amável, aos olhos de mamãe, se é que se pode dizer, não era mais que uma
cadeira velha, quebrada, que ela não podia vender a um mercador de
velharias, com medo de irritar papai... Ela não lhe falava nunca, nem
mesmo olhava em seu rosto...
A palavra papai era desconhecida para ela quando se tratava de seu
sogro. Quando tinha qualquer coisa para lhe dizer, mamãe tinha o hábito
de falar ao público, como se ela anunciasse uma ordem real. Arrume
rápido o quarto ! Tire esses jornais de minha frente ! Os sapatos da
criança – que sou eu – estão precisando de reparos, que se faça rápido,
se não, neste calor esmagador do verão de Istambul, os novos sapatos se
estragarão em dois dias !... Isso acontecia somente entre nós, é claro.
Na presença dos outros, ela esquecia sua existência, ou se continha com
um simples “Senhor Nihat”, depois de uma frase composta de algumas
palavras insossas, secas e frias como por exemplo:
“E o senhor ? Quer alguns senhor Nihat ?” Ela segurava o prato de
biscoitos, ou mesmo o pote de cristal cheio de bombons recheados de
amêndoas que tinha escondido debaixo dos chocolates ou sob o frasco de
água de colônia – mamãe amava esse frasco quase ordinário de gargalo
estreito e com a base particularmente larga que ela tinha guardado e não
utilizava outra coisa, quando ele estava vazio, ela me mandava encher,
não sem antes fazer uma longa prece para que eu não o quebrasse – vendo
meu avô colocar a mão sobre o peito, com um gentil “Obrigado, minha
filha”, inclinando a cabeça, eu engolia minha cólera. Isso me deixava
tão nervoso que tinha vontade de arrancar o prato de suas mãos e
quebrá-lo, ou mesmo quebrar o famoso frasco, e depois de tudo, bater na
barriga da perna de minha mãe com meus pequenos pulsos, até que elas
ficassem completamente roxas... Ou ainda, até que ela abandonasse esse
comportamento inumano, e adquirisse o hábito de lhe dizer: “ E você
papai ? Quer um ?”, e vê-la dar-lhe o prato....
Mas eu era incapaz de fazê-lo, pois tinha medo dela. Em efeito, se ele
não se preocupasse tanto comigo, eu poderia fazê-lo sem qualquer medo,
mas eu tinha medo por causa de meu avô. Se eu tivesse certeza que mamãe
se contentaria simplesmente em me privar das refeições quentes, dando-me
apenas uma fatia de pão depois de uma surra, me trancar dentro de um
buraco escuro debaixo da escada, e deixar-me preso debaixo da escada não
era a maior das minhas preocupações. Eu estava pronto para receber a
surra até que minhas costas estivessem roxas, ou a ficar privado de ir
ao cinema, aos bares nas praias, ou mesmo ao parque de diversões. Mamãe
poderia me colocar trancado a chaves ou dar ao filho da vizinha meu
paletó azul marinho que minha tia tinha trazido de uma viagem à Áustria,
isso tudo não me faria sofrer, eu acreditava que minha mãe ia tomar meu
avô como alvo, e seria ele que pagaria por tudo. Eu conhecia bem minha
mãe. Ela interpretaria minha reação como uma provocação da parte de meu
avô, e o acusaria de provocar uma criança – talvez quando eu me tornasse
um jovem homem, em idade de casar – que não lhe chegasse nem mesmo aos
ombros, eu a esganaria. Ela se metia a difamá-lo, não importa onde, nem
em presença de quem.
“Sim meus queridos, dizia ela, Deus nos deu um sofrimento sinistro que
eu não desejo nem mesmo aos meus inimigos...”
Vendo suas amigas a apoiá-la em suas questões, depois de sacudir o
colarinho de seu robe roxo – ela preferia as cores de tom violeta – e
tocar o com o indicador o carvalho da biblioteca, ela continuava:
“Esse velhote, essa serpente fingida, transformou meu próprio filho em
adversário obstinado, o filho que eu portei durante nove meses em minha
barriga. Ele o toma pelo braço, leva-o ao campo, dizendo que é para
brincar com uma pipa, ou para contemplar os pescadores na praia. Ele
leva essa criança para enchê-la de raiva contra mim...”
Ela diria o mesmo para meu pai. Mas com ele, ela não encontrava uma
razão, ou mesmo um pretexto. Sempre esperava o momento propício para
queixar-se de meu avô. E na maioria das vezes, fazia-o no quarto antes
de dormir. Depois que estivessem deitados, sua voz ressonante fazia-se
ouvir por muito tempo. Jamais se ouvia papai, apenas raramente ele se
pronunciava. Quer dizer, uma cólera lhe subia à cabeça. E nesse momento,
eu tinha a impressão que o copo de água que se encontrava sobre o criado
mudo ao lado de minha cama, tremia. Depois dessa tempestade, batia a
porta com força. Então, sentava-se em frente à janela que dava para a
varanda, até altas horas, e forçava um sorriso para que meu avô não
percebesse o incidente... Suas brincadeiras artificiais, suas palhaçadas
secas, não mudavam nada. A bomba estava pronta para explodir, o ar
dominador e assustador de mamãe planava sobre nós. Além do mais, havia
uma diferença entre a atitude de mamãe e de uma bomba explosiva.
Podíamos olhar a bomba com medo, era-nos impossível de fazê-lo com
mamãe. Éramos obrigados a dissimular o medo que ela nos dava, e fazer
como se uma coisa dessas jamais se passava, e jogar o jogo como se nada
acontecesse. Dissimulando a raiva, devíamos falar, brincar, sorrir e
mesmo rir alto; a atmosfera habitual de nossa casa devia ser mantida a
todo custo...
Sem dúvida, não podíamos dizer que papai guardava eternamente o silêncio
e que ele aceitava tudo que ela dizia. Raramente, podíamos escutar a voz
de papai se elevar. De tempos em tempos, nervoso, ele se metia à gritar.
Ele dizia à mamãe que essa atmosfera não podia continuar. Ele pedia para
que ela esquecesse esse pobre velho, ou mesmo dizia que ia deixar a
casa. Mas eram apenas palavras ! Depois de tudo, nem mamãe, nem papai
deixavam - queria meu avô e eu – nem mudavam para uma outra casa, como
ele falava sempre. Uma atmosfera glacial ficou em nossa casa por dois ou
três dias. Um silêncio arrasador... Todo mundo estava frio, mudo...
Passávamos de um cômodo para outro nesse silêncio de cemitério, nas
pontas dos pés, evitando até respirar mais forte, sentindo o vento
entrar pela janela entreaberta, o frescor desse vento aumentava mais a
tensão que restava dentro de casa. Enjoados pelo odor desagradável do
restaurante vizinho, sentíamo-nos quase doentes e deprimidos, pois
apenas sentíamos esse odor nesses momentos. Durante as horas de
leitura tentávamos nem mesmo fazer barulho com as folhas...
Dificilmente escutávamos os programas radiofônicos, pois baixávamos o
volume do rádio...
Depois de alguns dias, tudo tinha voltava ao normal. No fim de um
período de 3 ou 4 dias, papai levava de novo sua almofada que ficava
sobre o canapé da sala de estar, para seu quarto de dormir, vizinho
daquele onde dormíamos eu e meu avô. Mamãe ficava jovial e contente. Uma
vez, reencontrada essa jovialidade e essa alegria, ela deixava de bater
as louças e de pisar forte sobre o assoalho, a tal ponto que tínhamos a
impressão que se tratava de um ferreiro malhando o ferro. Isso
significava que mamãe tinha de novo as rédeas nas mãos. Depois de
escapar do caos, ela se sentia bruscamente leve e frívola como um
pássaro, pois durante essa chateação, onde meu avô e eu nos esforçávamos
de nada fazer para deixá-la nervosa, ou melhor, nós éramos nosso próprio
carrasco, mamãe se sentia sem dúvidas, melhor que nós. Meu pai tinha uma
personalidade estranha. Notadamente nos momentos de cólera – ele se
irritava raramente, mas quando isso acontecia, ele ficava arrasado; e a
causa dessa cólera era sempre o conflito entre mamãe e vovô – ele não
queria mais nada. Ele quebrava tudo, como por exemplo, a jarra, o copo e
mesmo os pratos de porcelana fina que mamãe guardava como as meninas de
seus olhos....
Em efeito, mamãe não estava no ponto de aceitar facilmente. Ser
menosprezada por seu marido, ter os livros sendo lançados pela casa,
escutar a voz de papai se erguer... todas essas coisas a desanimava, ela
se sentia infeliz e assediada. Em momentos iguais, ela se sentia como
uma jovem recém-casada voltando para a casa dos pais, e se considerava
desencorajada, perdida em sua auto-estima, como a filha da dona da
mercearia que morava no andar térreo do prédio vizinho. Ela havia
voltado para a casa de sua mãe no fim de um matrimônio de algumas
semanas com um famoso adendo cultural, o grande orgulho da dona da
mercearia, e tinha perdido sua estima aos olhos de todo mundo. Minha mãe
considerava meu pai como o dólar americano que se valoriza todos os dias
frente ao nosso dinheiro, e constatando sua própria desvalorização, se
afligia fortemente. Ela esperava a ocasião, ensaiava de encontrar meios
de voltar a ser a única a nos dominar.
Isso não lhe era difícil, estava engajada para que uma outra
demonstração de cólera pudesse inflamar papai como a um punhado de
palha, faltava esperar que a saída fosse tentada de novo, e isso poderia
levar quatro ou cinco meses. E esse tempo era suficientemente grande
para que mamãe degustasse consideravelmente o prazer de ser a imperatriz
da casa... Saía sobre o pretexto de visitar as amigas, fazer compras....
Ensaiava de não nos deixar na sala de estar com o pretexto ridículo que
iríamos sujá-la, dizia ela, e que fazíamos desordem... Deixava sobre a
mesa da cozinha uma grande travessa com tomates, pimentões verdes, uma
fatia de queijo, alguns pedaços de carne defumada em condimentos, de
forma que ela soubesse se meu avô tivesse pego um bocado ou não – pois
eu não comia essas coisas – pequenas berinjelas recheadas de alho, e
saía.
O mais engraçado, era que sabíamos que haviam essas berinjelas
recheadas de alho e salpicadas de salsa dentro da travessa, assim, uma
vez sentados na mesa, não podíamos deixar de abrir a tampa da travessa.
E era eu quem abria mais vezes, esperando a cada vez encontrar algo
diferente, mais particularmente charutos de folha de uva, recheados com
arroz e pedaços de carne cozida. Pobre vovô !... Para que pudesse comer
saborosamente, ele comprava manteiga de um pequeno vilarejo nas margens
do Mar Negro. Mas porquê mamãe preparava todos os dias o arroz e o
cozido com óleo de girassol, esse óleo viscoso ? Uma vez que a tampa era
aberta, depois de ver essas berinjelas fritas, cheias de alho picados em
finas fatias e cozidas no forno, todas minhas esperanças eram
destruídas, eu me sentia desesperado. Eu ficava em um longo silêncio.
Vermelho até as orelhas, fechava a tampa com um sentimento de culpa e
colocava rápido dentro do local habitual na geladeira. É claro, que às
vezes eu sucumbia ao desejo de jogar no lixo algumas dessas berinjelas
nauseantes... Enquanto eu guardava a travessa, eu olhava o interior da
geladeira com os cantos dos olhos, e rapidamente eu lhe falava os
alimentos que achava comestíveis:
“Você quer picadinho refogado ?”
“Obrigado !”
“E baklawa ? Você quer ? “
Os pimentões verdes fritos – ele não comia jamais, sem dúvida porque o
molho contendo alho ou legumes fritos lhe fazia mal ao estômago, e eu
não sabia – o doce de bergamota, o mel em fatias, as cavalinhas secas ao
sol, o atum salgado, a sopa de tripas, etc... Ele recusava tudo com um
gentil “obrigado”, com um gesto íntimo, colocando a mão sobre o peito.
Vendo-me tomado pelo desejo de lhe oferecer qualquer coisa diferente
daquela que mamãe tinha colocado sobre a mesa, ele me acariciava os
cabelos com uma doce satisfação e se sentia forçado a aceitar ao menos
um pequeno pote de iogurte, ou ao menos purê de batatas que mamãe havia
preparado graças ao aparelho que ela tinha comprado no crediário em um
supermercado. Depois de ter engolido, ele me fazia sentar à mesa redonda
que se encontrava na varanda, e me bombardeava com várias questões sobre
as lições já estudadas, até que o estudante que me preparava para a
entrada no colégio chegasse.
A propósito do dinheiro, apesar da avarice de meu pai – seria ele
verdadeiramente um mão de vaca, ou será que ele o era simplesmente aos
olhos de mamãe ? – Mamãe era literalmente uma gastona. E isso não vinha
de sua natureza, mas de seu hábito, pois ela era de uma família rica,
que tinha se desprovido de várias domésticas, um velho cozinheiro, uma
arrumadeira, uma lavadeira negra, um jardineiro, também negro e marido
da lavadeira, e até um mordomo...
E, às vezes ela contava, de tempos em tempos, que eram os carregadores
que transportavam os cestos cheios de legumes, frutas e carne. Seu pai
era um alto funcionário em não sei qual empresa. Para imaginar a
imensidão de suas posses, faltava citar ao menos quaisquer uns dos bens
que seus filhos bêbados tinham dilapidado no jogo, apenas alguns dias
antes de sua morte. E eis que nesse momento, melhor falando, seu irmão
beberão tinha perdido o majestoso hotel com um jardim imenso, cheio de
pés de pistaches, uma vasta vinha em Thrace, a boutique parecida a um
harém, bem ao lado da estação central de Sirkeci. Mamãe ignorava o preço
de um quilo de tomates. Uma vez que meu tio beberrão foi esmagado sob
um trem e que minha avó tinha morrido de uma crise cardíaca, ela tinha
que se acostumar em Taslitarla, na casa de uma tia, e depois dessa
mudança obrigatória ela passou a compreender tudo, e, que seus pés
tentavam atingir o sol.
Ela conhecera a riqueza, os bons ventos cessaram bruscamente. Ela
aprendeu que não se dá um vestido recém comprado, nem à empregada, nem
ao mordomo, sob o pretexto que os ombros estavam largos ou que o tamanho
não era bom, mas a descosturar e a reformar, ou mesmo a fazer ela mesmo
suas próprias vestimentas. Assim, ela pode aprender a não mais gastar,
como antes, tudo o que ela tinha. As jóias que tinha conseguido salvar
de seu irmão bêbado, os colares de pérolas, as medalhas, os broches, as
pulseiras retorcidas, os brincos de diamante, os anéis de turquesa, os
cintos de prata, tudo isso se fundia de um momento à outro. Como mamãe
tinha vergonha de vendê-los – ela achava tudo isso humilhante – a mulher
que ela dizia “tia” se encarregava de fazê-lo. Essa megera, essa tia
adotada, levava um bracelete e voltava com uma sacola de comida com tudo
que ela podia comprar. Para um belo bracelete de ouro, alguns quilos de
alimentos para duas ou três semanas !
Além do mais, os alimentos que ela colocava na mesa, não eram nem
comestíveis. Todo dia o mesmo tipo de comida... Depois de se casar com
papai, mamãe percebeu isso. O fato de ter comprado essa casa em frente
de uma ladeira escorregadia, à Bakirkoy, seguindo os apelos de papai,
com o dinheiro obtido da venda das últimas jóias... um colar em
diamante, dois broches de jade e um par de brincos em esmeralda, lhe
permitia ter consciência de ter sido roubada por essa falsa tia. Foi
então que mamãe compreendeu que aquele que havia subtraído o porta
cigarro em ouro de minha avó, os colares realçados de lágrimas de não
sei qual sultana, as pulseiras em ouro feitas pelo melhor joalheiro de
Istambul. De tempos em tempos se lembrava desse caso, e tinha uma grande
aflição, mas o que estava feito, estava... Isso se passava sobretudo nos
dias que meu pai a fazia entender que seu salário, bem como a pensão de
aposentadoria de meu avô, era estritamente suficiente para que
vivêssemos e não lhe permitia gastar para satisfazer os caprichos de
mamãe, uma cadeira de balanço de bambu, os móveis que ela queria trocar,
um açucareiro de cristal... Então, a raiva que ela tinha por essa megera
chegava ao cúmulo e ela se punha a maldizer.
Uma vez, terminado seu trabalho na emissora de rádio, papai pegava seu
automóvel e ia rapidamente para Cagaloglu, o bairro onde se encontravam
as editoras, a fim de enviar os textos que ele havia corrigido durante a
noite e para pegar outros. Ele não passava quase nenhuma noite sem
trabalhar. Depois do jantar, e mesmo durante , corrigia-os até altas
horas. E de manhã, ao acordar, colocava tudo dentro de sua pasta e ia
rápido entregar à impressão, antes de chegar ao escritório. Por isso,
era raro que recebêssemos visitas, quase nulo, sobretudo nas tardes.
Raramente, se um de seus amigos vinham vê-lo, com o objetivo de um
trabalho que não fosse possível explicar ao telefone, papai o recebia em
seu escritório. Seu discurso era líquido e seu convidado, depois de
beber uma tônica ou um pequeno copo de licor de framboesa – fruta
favorita de mamãe – iam embora rápido. E às vezes, podíamos encontrá-lo
no jardim, cheio de gargantas-de-lobo e primaveras, sem que a pobre
mamãe tivesse tempo necessário de fazê-lo apreciar seu doce favorito.
Uma vez seus grandes esforços acabados, pobre mamãe, decepcionada,
enterrava dentro das profundidades de seu coração, o desejo de contar
como tinha limpado as bergamotas colhidas em um jardim à borda do
Dardanelo, como preparava esse doce de acordo com a receita de um famoso
cozinheiro nos tempos de riqueza de seu pai. Não encontrava tempo nem
mesmo para dizer que por esses dias, por causa do uso de adubos químico,
as bergamotas tinham perdido o gosto natural.
As amigas de mamãe chegavam na maioria das vezes durante o dia, mais
precisamente depois do almoço, no chá das cinco. Mamãe que trabalhava
como tradutora em uma empresa, não se encontrava habitualmente em casa a
não ser nessas horas. Mas quando ela estava prevenida por suas amigas,
entrava cedo, ou nem mesmo ia trabalhar, depois de ter telefonado ao seu
chefe, sob o pretexto de estar doente – mais vezes que eu ou meu avô –
ela obtinha dois ou três dias de folga, bem como os votos de
restabelecimento de seu chefe.
Além do mais, sabíamos que ela não ganhava muito, mesmo porque, não
esperávamos nada dela. Estávamos habituados a vê-la gastar tudo que
ganhava em suas necessidades pessoais. Sem se contentar com o dinheiro
que ela ganhava todo mês, ela queria que os outros a consolasse, ela
sabia bem que o salário de papai não era suficiente para comer e
portanto tinha que juntar a quantia suplementar que ele ganhava nas
correções que lhe custavam o sono e o descanso, e a pensão trimestral de
meu avô. Insistia em não acreditar que não ganhávamos o suficiente para
comer e para o combustível do automóvel, bem como para sua manutenção e
pagamento de taxas. Em efeito, ela não pedia nada, mas constatávamos que
ela esperava que papai lhe desse uma quantia considerável e lhe dissesse
baixinho:
“Tome, não é muito, mas enfim, servirá ao menos para suas necessidades
diárias...”
Papai estava todo
dia duro. E às vezes bastante duro. Vamos supor que se ao retorno do
trabalho ele tivesse utilizado o carro como um táxi coletivo, ou que
ele tivesse levado qualquer pessoa ao aéroporto por um pouco de dinheiro,
ele lhe contava, e, por consequência, mamãe multiplicava essa volta por
trinta, como se ele fizesse isso todo dia, juntava com a soma habitual,
em seu espírito estéril, esperando aquilo que papai dizia “dinheiro de
bolso”. E quando isso não acontecia, ela ficava nervosa, pronta para
procurar briga por qualquer ocasião. Então, papai, desatava a querela,
de medo que seu sensível pai não pensasse que era ele o sujeito dessa
discussão, e tentava terminar logo com isso.
Além do mais, mamãe já tinha encontrado o meio de obter o dinheiro que
lhe faltava... Cada vez que ela fazia compras, ela mostrava uma nota
mais alta a papai. E isso significava que sempre tinha uma soma de
lado.
Mamãe não gostava de desordem, mas uma desordem perpétua dominava nossa
casa. E às vezes, era seu próprio trabalho que estava esparramado por
tudo... Ela não tinha o hábito de colocar no lugar as coisas que pegava,
depois se queixava da desordem. Eu não compreendia jamais essa
contradição: deixar esparramado tudo o que tocava e depois se queixar da
desordem !... Chegava a colocar ao mesmo tempo e no mesmo lugar um
tecido, uma meia, um pote de geléia, e suas pantufas sobre uma poltrona
ou mesmo em uma estante da biblioteca, depois de saber que uma de suas
amigas viria em nossa casa. Por conseqüência, lhe era impossível
encontrar aquilo que procurava. E mesmo não conseguia às vezes deixar no
armário de roupas um cinto que eu tinha encontrado no refrigerador ou
mesmo um saiote que eu tinha encontrado dentro de minha bolsa. Eu tinha
muitas vezes temor que nosso avô, tivesse recolhido as travessas e as
formas na cozinha e as tinha arrumado no seu lugar. Meu avô não era
muito falador, ele não tinha o hábito de criticar qualquer um na sua
ausência, mas, era ele que colocava em ordem as coisas em nossa casa.
Era nos impossível vê-lo desocupado. Ele encontrava sempre qualquer
coisa para fazer. Limpar os cinzeiros, guardar os jornais e as revistas
não importa onde... Arrumar a toalha redonda que estava eternamente no
meio da sala de visitas – e o que era sagrado, era que a toalha sempre
escorregava !... Era-lhe impossível deixar de fazer suas tarefas.
À tarde, antes de se deitar, ele nunca deixava suas roupas sobre uma
cadeira, tão pouco as deixava sobre seu leito. Eu que dividia o mesmo
quarto com ele, jamais tinha testemunhado qualquer desordem...
Depois da morte de minha avó, meu avô ficou só em uma pequena cidade da
Anatólia, com medo de mamãe, não tinha trazido tudo que possuía, pois
mamãe tinha falado muitas vezes a papai que lhe escrevesse e o
advertisse a propósito dos objetos que ele deveria trazer, pois nossa
casa era pequena para conter os móveis de uma segunda família. É por
isso que vovô deveria fazer uma seleção minuciosa, vender aquilo que
quisesse e se desfazer dos objetos que não valiam nada. Mas eu não
acreditava que papai lhe havia escrito essa carta, assemelhando-se a um
“firman” otomano, pois papai não tinha a arrogância de redigir uma só
carta a seu sensível pai, com a crença que esse velho homem ficasse
infeliz e renunciasse de se juntar a nós. Por outro lado, quando nós
estávamos na sala de espera da grande estação central, com duas valises
na mão, foi mamãe que se fez mais surpresa. Quando o automóvel cor
pistache de papai tomou nossa rua cercada de acácias, de ameixeiras
pretas e gigantescas castanheiras, papai aproveitou a distração de mamãe
absorvida pela leitura de uma revista inglesa e teve a coragem de
perguntar a seu pai, em voz baixa, se ele tinha depositado as bagagens
no depósito da estação e se tinha pedido um recibo. Foi então que meu
avô replicou com um de seus famosos sorrisos:
“De qual bagagem você fala, Suavi ? Eu não tenho nada além dessas
bagagens, essas duas valises que estão dentro do porta-malas do
automóvel...”
“Em sua pequena valise, ele tinha suas roupas, suas famosas meias feitas
à mão, um cinto de lã, seu roupão de seda bordô, suas camisas, suas
pantufas, seu paletó de domingo que estava sempre novo como se fosse
recentemente costurado. E, na grande mala, não mais que alguns pratos
decorados, acomodados pela utilização, escolhidos entre todos os outros
que ele havia dado aos vizinhos. Em verdade, eu não achava que meu avô
acreditasse que íamos nos servir dessas coisas em cobre sobre as quais
se encontravam ornamentos e inscrições gravadas em não sei qual língua.
Mamãe não colocaria essas coisas entre os móveis bem modernos que
ornavam nossa sala de estar. Era incrível ! Meu avô, um sogro que
conhecia sua nora depois de quatorze anos, devia saber disso. E ele
sabia, eu tinha certeza. Então porquê pensava ele que mamãe utilizaria
essas coisas para decoração ? Esconder a vergonha de trazer essas coisas
sem valor para mamãe que não o amava ? Ou o esforço de ganhar seu
coração, por uma palavra doce ?
Em efeito, ele não tinha necessidade de se esforçar para ganhar o
coração de mamãe. Normalmente os presentes que ele tinha enviado durante
anos, deviam ser suficientes para seduzí-la. Nenhuma festa, nenhum
aniversário de casamento não se passava sem que ele enviasse um
presente. Em todas as ocasiões, mamãe recebia ao menos um pacote
contento um lenço de seda pura, um par de brincos, alguns metros de
tecido para um vestido, acompanhado de votos de dias felizes e pedindo
que humildemente aceitasse esses presentes... Assim mesmo, quando
acordava de manhã, partia rápido, sem mesmo tomar seu café, para ficar
na fila que se formava em frente ao banco, onde esperava com grande
impaciência até tarde para receber sua aposentadoria, e, muitas vezes
tinha que esperar até quase o fechamento do banco.
Sem mesmo abrir o envelope, ele dava essa soma ao meu pai. Papai lhe
devolvia algumas notas para suas despesas pessoais. O pobre avô, depois
de reservar uma soma para seus gastos pessoais inevitáveis, como por
exemplo a graxa para seus sapatos, a soma necessária para comprar sachês
de chá que ele habitualmente tomava após cada refeição e o dinheiro
para ir a Kurucesmé, visitar Serafattin Efendi, seu amigo querido, com o
resto de seu dinheiro de bolso, ele não esquecia jamais de oferecer
pequenos presentes à mamãe e às crianças. Era ele quem comprava o
material de escola para mim... E por que ele tinha dito isso ? Qual a
necessidade que ele tinha de dizer à mamãe que tinha trazido essas
coisas para que utilizasse como acessórios decorativos ? Essa questão me
acompanhava por anos.
Tanto faz se meus esforços para sondar meu avô sobre isso, eram
suficientes ! Ele era muito discreto, e meus esforços não serviam para
nada.
Era por isso, como se todo o segredo estivesse escondido nessas coisas
que mamãe tinha instalado ao lado da cozinha, sobre a pia, e também no
sótão, onde eu subia várias ocasiões e encontrava essas coisas,
examinava-as durante minutos e tentava adivinhar as inscrições que
estavam gravadas. Nosso sótão era bem estreito. Papai, depois de comprar
essa casa, demoliu o segundo andar que estava em ruínas, e fez o telhado
ao nível do primeiro andar. Uma das clarabóias que clareava o sótão,
dava sobre o jardim e era recoberta de glicínia que chamava a tenção dos
passantes pela vivacidade de suas cores e a beleza de suas flores.
Muitas pessoas paravam ao pé do muro do jardim para admirar e mesmo
alguém vinha à nossa porta para perguntar à respeito dessa planta, ou
pedir uma muda. A parte disso, apenas uma fraca luz violeta púrpura pelo
buraco verde que saía sobre o vermelho, nenhum raio de luz podia se
infiltrar. A fraca luz que chegava a duras penas ao sótão, não penetrava
além da pequena janela da frente. Era por isso que mamãe depositava
móveis e objetos supérfluos e mesmo alguns sacos cheios de sabão ou de
açúcar que papai comprava nos raros momentos que ele ganhava seus
salários complementares.
Eu os examinava, tocava e olhava por diversas vezes e depois descia pela
escada que fazia ruídos a cada passo, sem nada compreender... Algumas
vezes tinha visto meu avô no sótão. Ele tentava, como eu, adivinhar os
segredos das imagens gravadas sobre o cobre, ou mesmo saber se tudo
estava lá. Cada vez que o encontrava no sótão, desculpava-se que tinha
subido para pegar um pedaço de sabão, encher as vasilhas de arroz, em
seguida descia rápido. Para evitar que as coisas se estragassem, nós
guardávamos no sótão o excedente das provisões. Assim, ele sempre
encontrava um pretexto para suas visitas furtivas, eu estava certo que
ele subia simplesmente para admirar suas coisas, as acariciar como uma
criança. Eu tinha certeza, eu o tinha visto !...
Durante um fim de semana, papai e mamãe tinham partido para fazer uma
visita a um amigo recentemente saído da prisão. – um dos amigos
escritores de papai tinha sido condenado a dois anos de prisão por causa
de um artigo literário que ele tinha publicado em um jornal – e eu,
estava perdido entre os livros, quando bruscamente, percebi que meu avô
que estava sempre ao meu lado e absorto em sua leitura, tinha
desaparecido. Olhando ao redor, para fazer-lhe uma pergunta à propósito
da palavra inglesa “Liberty” que me obcecava toda a manhã, escutei uma
pessoa andar pelo forro. Subi devagarzinho a escada, tão silencioso
quanto uma sombra, e vi quando meus olhos se acostumaram à escuridão que
reinava no sótão, atrás da janela recoberta de folhas de glicínia, com
uma de suas coisas aos braços, a balançá-la como uma jovem mãe balança
seu bebê... Esse testemunho também confirmava que ele ia ao sótão, não
apenas para procurar um martelo, uma chave, mas por seus cobres. Ao
voltar sem fazer barulho, retornei aos livros. Mas era inútil... Não
compreendia nem mesmo uma palavra da leitura. Uma curiosidade louca me
enchia e me queimava de vontade!... Essa vontade de saber me obcecava a
cabeça a ponto que se eu não pudesse desvendar esse mistério morreria de
curiosidade. Que pena ! Apesar de meus esforços, não conseguia descobrir
a relação entre meu avô e seus cobres.
Nos últimos dias as visitas ao sótão estavam cada vez mais freqüentes.
Ignorávamos, assim dizendo, um ao outro, em nossas visitas habituais. Eu
não sabia se ele estava ao curso de minhas visitas, mas, pessoalmente eu
não ignorava as suas. Assim que ele subia o último degrau da escada, eu
ia atrás para saber o que ele fazia, sem mencionar os momentos onde o
via acariciar um objeto nos braços, eu não conseguia compreender. E
mesmo algumas vezes, para saber se ele tinha escondido dentro, peças de
ouro ou um mapa do tesouro, eu tinha minuciosamente vasculhado. Assim,
quando nossas visitas vinham a ser cada vez mais freqüentes e que os
pratos caíam por vezes no chão do forro de madeira, nós chamávamos a
atenção de mamãe. Observando que eu subia com freqüência, ela pensava
que eu realizava minhas experiências de química e estivesse tentado
fazer qualquer loucura.
Vendo que não era por causa das experiências químicas, de medo que eu
tivesse um problema psicológico, (ela consultou um psicólogo) – o que
constatei pelas conversas telefônicas e pelos cochichos que se passavam
entre papai e mamãe – ela colocou um cadeado na porta do sótão. Quer
dizer, por causa de minha doença psicológica, era assim que mamãe se
expressava, era meu avô que levava a culpa. Sentia-me infeliz com a
idéia de que eu o tinha impedido de ver seus objetos. De tempos em
tempos, a idéia de roubar a chave do sótão e dá-la para meu avô,
parecia-me um ato como o de oferecer a um doente sedento um copo de
refrigerante. Mas como fazê-lo ? Para mim, não era difícil roubar a
chave que se encontrava no pequeno tamanco holandês. Mas o que diria a
meu avô ? Isso era difícil ! O pobre velho ignorava que eu sabia de seu
segredo...
Como nossas visitas ao sótão foram proibidas, ao retornar da escola,
depois de ter preparado minhas lições e realizado meus passeios
habituais na praia em companhia do meu avô e depois de beber nosso chá
quente – muitas vezes, se o clima estivesse favorável, eu preferia um
sorvete de framboesa – voltávamos pra casa para ler na varanda. Lá,
durante nossas leituras, escutávamos os trens que não estavam longe,
consultávamos rapidamente nosso relógios. Meu Deus ! Nós conhecíamos bem
os horários de trem da periferia ! Os trens que levavam os
trabalhadores para as fábricas... Aqueles que transportavam milhares de
pessoas às praias... Eu não sabia porque, mas nossas visitas à via
férrea sempre acabavam no momento onde uma multidão composta de gente
engravatada, com os colarinhos brancos e com pastas nas mãos chegava. O
trem das seis horas e dez... Quando meu avô via esse trem, uma grande
emoção tomava-o ! Vendo os passageiros saindo do tumulto do trem,
dirigirem-se para as grandes escadas da estação, onde se encontravam os
restaurantes, ele colocava rapidamente seu paletó, como se tivesse
chegado com o trem, soltava a gravata e se metia a beber em pequenos
goles seu chá e colocava-se a ler.
Eu também, ao lado dele, preparava minhas lições ou lia os romances
emprestados dos amigos. Assim, tínhamos a possibilidade de impedir os
garotos que tentavam pular o muro baixo recoberto de hera, separando
nosso jardim da grande construção vizinha e dos ladrões. Os garotos
tinham pego gosto pelas frutas da pereira plantada pelo meu avô. As
pequeans cabeças redondas desapareciam assim que nós a notávamos. E
nesse momento, quando eu me ocupava, na varanda, dos pedregulhos
coloridos – que eu havia trazido durante o retorno de uma de minhas
férias ao mediterrâneo e que tinha polido – quando passava a língua
molhada sobre eles, tornavam-se brilhantes como pedras preciosas, jade,
diamante, esmeralda, tuquesa, ametista... – meu avô no jardim, arrancava
as ervas daninhas dos canteiros que estavam cobertos de maravilhosas
flores. E ele murmurava docemente velhas canções de velhos compositores
como Hafiz Burhan, Celal Guzelses, Sukru Tunar... Quando via um pássaro
diferente, seja sobre os roseirais que enfeitavam nosso jardim, seja
sobre as castanheiras que se elevavam do outro lado da rua, ele gritava
com grande emoção:
“Eh, pequeno homem ! Venha rápido, você quer ver um melro !...”
Fazendo de forma a evitar que o pequeno pássaro comprendesse que
falávamos dele, ele tirava a atenção do jovem, com um doce sussurro.
Esse “pequeno homem” era uma expressão que ele usava às vezes para me
chamar...
Era agradável repousar na varanda, mas as cadeiras não eram muito
confortáveis. Mamãe queria trocar tudo, eu não sabia por que, nem
pensava nunca em renovar essas duras cadeiras em maderia, onde os
assentos nos obrigava a sentar como espantalhos, com o corpo duro. Em
efeito, era certo que ela não estava contente de possuir essas velhas
cadeiras antiquadas e de não poder desfrutar do prazer de apreciar nosso
jardim – era, talvez, pequeno, mas muito bonito; de outra forma, era
verdadeiramente um privilégio de ter um jardim em Istambul, sobretudo à
Bkirkoy, o lugar onde as massas de concoreto dominavam tudo – mas como
ela queria aumentar a varanda suprimindo as duas colunas de mármore,
reformando a varanda, colocando uma grande mesa e cadeiras de ferro
forjado, bem como uma cadeira de balanço... E para fazer tudo isso, era
necessário uma quantidade respeitável de dinheiro, essas cadeiras
desconfortáveis restavam lá. Eu repetia todas as ocasiões que gostaria
de ter poltronas de plástico de assento estofados e mais confortáveis
para ficar mais tempo sentado, e, além do mais, mais agradáveis de se
ver. Mas ela não entendia.
Um belo dia, tínhamos ido, com meu avô, à Kurucesmé, para visitar um
amigo seu, Serafettin Efendi.
Meu avô falava tanto de seu amigo e sobretudo de seu jardim, que uma
curiosidade ardente havia tomado conta de mim, esse jardim lembrava a um
daqueles das Mil e Uma Noites, que ornamentava meus sonhos. Quando essa
pequena casa no meio de um grande jardim, encostada em uma colina às
margens do Bósforo me vinha ao espírito, eu explodia de curiosidade.
Assim, era-me impossível de dizer ao meu avô. E se eu me lembrava bem,
eu tinha insinuado uma ou duas vezes, mas ele tinha fingido, não sei
porquê, de não entender. Constatando sua indiferença à respeito de minha
curiosidade, eu estava decepcionado e caído em um aborrecimento secreto...
A idéia de que ele tinha qualquer coisa para esconder de mim, causava
uma certa raiva dele.
Felizmente, nesse dia, ele pensou em me levar com ele, e me tomando pela
mão, me levou... O trem do subúrbio, o ônibus, a baldeação de ônibus...
Após uma série de sobe e desce e de caminhadas, lá estava eu na casa do
amigo de olhos agradáveis de meu avô, velho professor de literatura
aposentado !.... O imenso jardim que abrigava os pés de pistache, os pés
de mexericas, as pereiras com os frutos redondos, ornadas de traços
brancos... Uma pequena casa rústica, perdida entre as folhagens. Com uma
pequena bacia em mármore em frente, ao lado da qual um pé de magnólias
gigantesco se elevava... Pequenos biscoitos de gergelim que eu
simplesmente admirei, sem mesmo provar um bocado, a fim de não perder o
gosto saboroso do chá preparado em um samovar à carvão... O grande
tumor de Serafettin Efendi, um grande bócio que se movia a cada
palavra... Passeios nesse imenso jardim onde o canto dos pássaros
soava... As corridas sob as árvores... Os galhos carregados de frutas
das quais eu nem mesmo sabia os nomes... Eu não conseguia nem mesmo
decidir sobre qual eu treparia... A música triste que saía dos alto-falantes
de uma loja de música, refugiada no sub-solo de um grande prédio de dez
andares, ou mesmo mais.. As plantas do velho amigo do meu avô, o
propósito da alteração da natureza, causada por esse urbanismo
desordenado. Eu escutava melhor suas recriminações quando a música
diminuia ou mesmo quando ele elevava sua vóz a esse respeito. Um garoto
de minha idade chamou-me ao redor para que eu não me sentisse só... As
besteiras desse garoto idiota, de cabeça grande que me fixava com seus
olhos à flôr da caberça; suas perguntas absurdas às quais eu deveira
responder... Passeios às margens do Bósforo.
Durante o retorno, como havíamos perdido muito tempo diante das vitrines
das livrarias, ou por causa dos engarrafamentos, já se fazia bem tarde.
Mamãe retirava a mesa da varanda. Ela retirava os pratos cheios de
espinhas de peixe. Como meu avô tinha colocado uma lâmpada nova no lugar
da velha que estava queimada, a nova estava muito forte – pois era muito
difícil de encontrar uma de seu gosto, por causa da crise monetária – a
varanda estava bem iluminada. Assim, forçosamente entrando pela porta do
jardim, toda a varanda foi exibida diante de nossos olhos. Na pequena
entrada do jardim, depois de ter feito quaisquer passos, um mancha
vermelha quase alaranjada, bem no local onde meu pai tinha sentado para
fumar seu cachinbo, me saltou aos olhos. Por um momento, sem nada
compreender, eu olhava de boca aberta. Assim, quando mamãe voltou da
cozinha, retirando a cobertura de algodão feita de crochê, a segunda
marca vermelha apareceu ! Constatando que eram as poltronas que eu
sonhava depois de quase três anos, tomado de felicidade, eu me sentei
como um velho boneco, ou uma jovem mulher grávida que tinha a chance de
encontrar um lugar em um trem de subúrbio ou um ônibus super-lotado...
Papai enchia seu cachimbo e acendia com seu isqueiro bem antes de
mergulhar na papelada à corrigir, e me vendo muito contente sobre a
poltrona nova, ou mesmo bobo de alegria, me sorria sob seus óculos e
cochichava:
“Hoje você deu uma bela escapada, hein !...”
Depois de ter pronunciado essas palavras, fazendo alusão à nossa
ausência durante todo a jornada, ele se voltava ao trabalho de correção.
Eu esperava que ele levantasse sua cabeça e que me sorrisse, que ele me
acariciasse a cabeça desalinhando meus cabelos. Mas ele não fazia nada.
Ele não tinha tempo de pensar em me perguntar qualquer coisa... Uma
angústia indescritível tomava conta de mim, de um momento para o outro,
dentro dessa espera inútil. E eu percorria com um olhar distraído, meu
pai. Mas o pobre não estava jamais em estado de tirar seus olhos fixos
sobre as folhas a corrigir, e de me ver observá-lo, e de me perguntar a
propósito de meus olhares frustados. Perdido em seu mundo, por assim
dizer, ele tinha cortado todos as ligações com o mundo exterior. O
cheiro forte do tabaco de seu cachimbo, a papelada sobre as quais, lápis
vermelhos, verdes ou laranja tinham deixado suas marcas... Seu semblante
pálido e quase insensível, perdido atrás de seus grossos óculos, ele
trabalhava ignorando minha presença. Alguns suspiros raros, o odor
inundante do tabaco, o barulho das folhas corrigidas, colocadas umas
sobre as outras. A indiferença de papai tinha destruído toda a minha
felicidade. E acima de tudo, seu ar orgulhoso dos homens importantes, me
entristecia bastante, e dentro desse estado de alma eu já tinha
esquecido a emoção causada pelas poltronas alaranjadas. Certo que
ficamos ausente durante todo o dia, papai não me perguntava onde
estivéramos, o que havíamos feito durante todo esse tempo ? Essa
indiferença, durou até que mamãe chegando da cozinha me disse que nosso
jantar estava pronto, sobre a pequena mesa da cozinha.
Após esse aviso de mamãe, acariciando meus cabelos, ele disse:
“-Vá ! Não faz o seu avô esperar...”
Eu não tinha vontade de comer – as frutas e sobretudo os pequenos
biscoitos de gergelin que eu tinha beliscado depois do almoço, tinham me
tirado a fome – come eu sabia que o pobre velho não comia sem mim, eu
engoli tudo o que ele colocou em meu prato. Era-me um pouco difícil,
depois de tudo, comer a salada, a sopa, as folhas de uva recheadas e uma
tigela de doce, mas eu suportava, pois meu avô era digno de toda sorte
de devoção. O pobre velho, esquecendo seus próprios problemas – o
reumatismo que lhe deformava, o acesso de tosse que lhe fazia esbugalhar
os olhos – respirando com dificuldade, me perguntava o que me afligia,
se eu tinha dor em qualquer parte. E ele não me deixava sem que fosse
convencido de que eu não tinha nada de importante.
Essa noite, eu passei em claro, angustiado pela indiferença de papai
frente à minha alegria. Como mamãe tinha o hábito de ser indiferente
sobre tudo e sobre todos, sua atitude não significava nada, mas a
indiferença de papai tinha-me magoado totalmente. O sono tornava minhas
páupebras pesadas e me dava dor de cabeça. A fim de acabar com esse mal,
esforçava-me a dormir, mas eu não conseguia. Mesmo que eu adomercesse,
todos os dias a mesma angústia, o mesmo pesadelo ! E eu acordava à toda
hora... Mas nada mudava. Pois o pesadelo durava mesmo quando eu estava
acordado. Toda a noite, eu lutava contra os canibais e os dragões que
sopravam fogo pelo nariz. E, toda vez, era meu avô que me salvava da
boca dos dragôes ou das caldeiras negras, plenas de água quente,
cercadas de negros portando colares de ossos humanos, enquanto papai e
mamãe se repousavam em suas redes, instaladas sob as sombras das árvores
tropicais...
Era provável que meu avô também não conseguisse dormir; eu, às vezes,
entendia-o rolar na cama. E de tempos em tempos, falar consigo mesmo e
chorar baixinho...
Na manhã dessa noite de pesadelos, tomávamos nosso café da manhã na
varanda, esquecendo todo o nosso cansaço e a angústia da noite, sentindo-me
leve como um pássaro.
Os cafés da manhã que eu tomava com minha família estavam chegando ao
fim. Logo as férias acabariam e eu recomeçaria à tomar o caminho da
escola, bem cedinho, minha bolsa numa mão e um pacote contendo duas
fatias de pão ou um sanduíche de carne defumada na outra. Como eu tinha
ajudado à colocar a mesa, esta já estava pronta. Quando mamãe preparava
os ovos, eu pegava o prato de salame com pistaches. E meu avô cortava o
pão. E então, a mesa estava posta !... Depois de ter tomado algums goles
de chá, eu estava pronto para comer o meu ovo, quando os recepientes de
cobre de meu avô vieram-me ao espírito. Essa idéia brusca tinha-me
cortado o apetite e eu não podia comer mais nada. Por outro lado, o que
era estranho, era que essa poltrona em plástico tinha tomada um ar de
fogão à carvão e parecia-me que estava sentado sobre carvão ardente... E
esse calor aumentava de um momento à outro. Esse calor, essa angústia,
essas agulhas imaginárias me espetavam... Um suor abundante. Um suor que
tinha me encharcado até os ossos. A fim de que mamãe ou papai não
percebessem que eu estava encharcado de suor, eu me esforçava de não
lhes chamar a atenção. Nenhum movimento que podia fazê-los me notar.
Por quanto tempo isso me tomou, não me lembro. Mas saindo devagarinho,
subitamente dirigi-me para as escadas do sótão... Os degraus em madeira
quase arruinados começaram a gemer.... Os cliques da chave que mamãe
tinha esquecido na fechadura... A obscuridade infinita do sótão, depois
da claridade ofuscante da varanda sob o sol brilhante... Meus olhos se
habituaram pouco a pouco à obscuridade e eu começo a distinguir o
ambiente. Sim, mas !... Eu procurei com os olhos os cobres que meu avô
guardava cuidadosamente. Eu corri rápido e me pus a procurá-los tateando.
Procurei por tudo... Na caixa de embalagem da televisão, na qual mamãe
guardava os recepientes em porcelana fina, presenteadas pelos amigos por
ocasião da cerimônia de minha circuncisão... A caixa de ferramentas... e
procurei mesmo na mala onde se encontravam roupas usadas... Mas os
pratos planos e os vasos gravados com incrições não estavam mais. Nem
mesmo um pequeno traço desses cobres que meu pobre avô tinha trazido de
Sivas e que ele ficava contente de tocar, de acariciar como uma
criança. O medo que tinha me invadido nesse momento, se transformou em
um pânico assustador. O pânico de uma ligação entre esses objetos em
cobre e as poltronas em plástico instaladas na varanda ontem à tarde
!...
Bruscamente me senti em um vazio infinito e para não cair, coloquei-me
depressa contra a viga do sótão. Ignorei quanto tempo fiquei por lá, mas
quando desci, depois de me recuperar, vi meu avô a ler seu jornal na
mesa coberta com a toalha trabalhada em crochê. Isso significava que o
café da manhã tinha terminado e que a mesa tinha sido retirada.
Quando ele escutou meus passos, levantou a cabeça e começou a sorrir
docemente. Um sorriso onde podíamos ler sua amargura, a dor e qualquer
coisa vaga. Era esse verdadeiramente um sorriso ? ...
Vendo que não me sentei sobre as poltronas, mas sim sobre o peitoril da
varanda onde as grades de ferro estavam instaladas, ele me olhava com
inquietude e me tomando pelo braço, me fez sentar sobre uma das
poltronas que mamãe comprou com o dinheiro proveniente da venda dos
cobres de meu avô.
Os minutos que eu tinha passado, os minutos que me pareciam infinitos...
Eu me esforçava para evitar seus olhos a fim de que não compreendesse a
situação.Como se fosse eu que tivesse vendido seus cobres para um
comerciante de bugigangas e comprado essas coisas alaranjadas com o
montante, me sentia culpado na frente dele. No momento quando eu
procurava um pretexto para me afastar ele propunha ir à borda do mar.
Saímos. Passeamos por muito tempo na orla marítma. Tomamos um chá em um
café rústico, olhamos, ou sobretudo, admiramos o mar prateado e
brilhante sob o sol do outono. Olhamos os pescadores de vara, sentados
sobre o parapeito que separava a calçada do mar... Conversámos, meu avô
e eu. Conversávamos com os pescadores. Depois passeávamos pelas ruas.
Olhávamos as vitrines das lojas....
Mesmo que eu não nada tivesse dito à respeito de seus cobres, meu avô,
como se estivesse por dentro de tudo e que soubesse que ele não poderia
mais receber seus pertences que portavam os traços de décadas ou quem
sabe dos séculos, tinha o sorriso desaparecido dos lábios...
E depois desse dia, eu nunca mais vi meu avô se sentar sobre essas
poltronas. Nem eu...
E, eu olhava com estupefação, os raros visitantes que tomavam seus
lugares. Pareciam-me que eram braseiros nos quais se encontravam as
brasas, e eu pegaria fogo se pensasse em me sentar. Por outro lado, eu
tinha a impressão que com essas poltronas, meu avô estava mais
degenerado, mais acabado e que ele não teria mais prazer na vida. E
vendo-o assim perdido em seu canto, eu tinha a morte dentro da alma. O
torpor me angustiava a cada dia....
Traduzido por Celso ROCHA
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